Súditos do Rei Midas


Em Serra Pelada (2013), Heitor Dhalia mostra homens e mais homens sangrando o solo em busca de ouro. Eis ou não uma síntese de nossas vidas?

Flávio Ricardo Vassoler, Carta Maior

“Maior concentração de seres humanos para trabalho manual desde a construção das pirâmides do Egito”. Eu (ainda) não sei como alguém se sente quando o oncologista diz que a biopsia acaba de diagnosticar um tumor maligno, mas quando me deparei com a frase garimpada do filme Serra Pelada (2013), direção de Heitor Dhalia, fiquei pensando em como era morrer de câncer nos tempos dos faraós. O leitor e a leitora talvez se sintam algo desnorteados com o parágrafo (propositalmente) desconexo, mas foi desse modo que me senti quando as tomadas panorâmicas do filme capturaram um formigueiro humano interminável, no início da década de 1980 – eu nasci em 1981 –, em busca de um único objetivo: ouro.

Não se sabia o que era o câncer no tempo dos faraós. Quem poderia imaginar algo como a “humanidade” se as margens do Nilo delimitavam o mundo? As pirâmides têm os nomes dos grandes governantes. Ora, foram eles que as erigiram? Se chegarmos perto das pirâmides e as tocarmos com nossa compaixão, sentiremos que a verdadeira base que as sustenta é o chicote. O suor. O trabalho anônimo daqueles que jamais foram considerados os protagonistas da história. Séculos mais tarde, quando o capitalismo começou a forjar a pirâmide da humanidade sobre o mercado mundial, quando passou a ser necessário educar para (re)produzir, Beltolt Brecht (1898-1956) reconheceu as Perguntas de um trabalhador que lê:

“Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída —
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos Na noite em que o mar a tragou.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele? 

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões”.

Quais são os pressupostos históricos dos versos de Brecht? Um aprofundamento sem igual na história humana da noção de (busca por) igualdade. A consciência de classe. A descoberta politicamente orientada de que é a base que soergue o cume da pirâmide. Ainda assim, a consciência aguçada anuncia que continuamos a morrer de câncer. E pior: precisamos nos deparar com as tomadas panorâmicas de Heitor Dhalia a descortinar os milhares e milhares de trabalhadores à procura de um único elixir. A revolução? Não. O ouro burguês.

Creio que nosso momento histórico distópico precisa ler o poema de Brecht a contrapelo da consciência de classe. Quando a dialética passa pelo mercúrio do garimpo da Serra Pelada, uma pergunta não deixa de despontar: por que essa energia assombrosa em busca da propriedade áurea simplesmente não consegue ser canalizada para a sociedade como um todo? Por que precisamos ser empresas em miniatura – do it yourself!, faça você mesmo! – para que a partilha do ouro seja feita em detrimento de nós mesmos? Legítimo ouro de tolos. Se o Egito ficou para trás e já não acreditamos em faraós, por que o fetiche do ouro consegue congregar milhares, milhões e bilhões de espoliados ao redor do seu altar?

É curioso: dizem que Deus não existe. Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881) conceberam os maiores réquiens ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus. “Se Deus está morto e se Deus não existe, tudo é permitido”. No Velho Testamento judaico há a noção de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Mas não há imagens de Deus em uma sinagoga. A onipresença de Deus sempre foi uma abstração. O ouro, como os santos católicos – o ouro dos santos católicos –, era o corpo da alma ausente. Mas o ouro já é anacrônico. Em uma cidade violenta como São Paulo, quem carrega muito dinheiro na carteira? Cartões. O dinheiro deixou de ser dourado para virar a maior das abstrações. A maior das ficções. E nossa era secular que já não acredita em Deus não consegue deixar de acreditar no dinheiro.

Sim, muitos reclamam do dinheiro e de seus princípios. Mas a dialética, a contrapelo de sua esperança de superação e a partir do sentido e do ressentimento de nossos tempos, a dialética combalida me faz perguntar: que valores e práticas agregariam as pessoas em sociedade para além da lógica do dinheiro? Antes que os(as) mais otimistas soem as trombetas de alerta, gostaria de mencionar, ainda uma vez, as imagens panorâmicas de Heitor Dhalia. Homens e mais homens sangrando o solo em busca de ouro. Eis ou não uma síntese de nossas vidas? Seriam estas as Perguntas de um leitor que trabalha?

Quando Karl Marx (1818-1883), n’A Ideologia Alemã, trouxe soslaios do que seria a sociedade emancipada com a noção de que poderíamos pescar durante o dia e fazer crítica literária à noite, certa vez me perguntei se, em Utópolis, seria possível, de alguma maneira, que a Serra Pelada retornasse, que o hedonismo da Serra Pelada retornasse, que o Bezerro de Ouro voltasse a ser o nosso ídolo. Não estamos no século XIX e, salvo engano, as revoluções de 1848 não batem à nossa porta. A noção de bela vida que embasou os soslaios de Marx foi efetivamente solapada pelo princípio burguês. (Salvo novo engano, ela apenas respira com a ajuda de aparelhos.) Refiro-me à noção de uma vida ética e esteticamente completa em si mesma, plena de sentido e realizações com trabalhos relacionados às nossas vocações e escolhas potencializadas pela sociedade organizada racionalmente, isto é, segundo os princípios da humanidade reconciliada. (Mas que princípios seriam esses?!) Hoje, a Serra Pelada apenas nos apresenta a escatologia de nossas vidas, a sucessão burocrática de nossos dias como a reprodução desordenada das células até que o tumor vindouro nos diga qual foi o sentido – e o ressentimento – do que (não) fizemos. Ou pior: do que não pudemos fazer. Se já houve um tempo em que se pensou que era possível imaginar algo para além de Serra Pelada, Heitor Dhalia nos leva a imaginar por que ainda somos garimpados.

Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo."

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