Eberth Vêncio, RevistaBula
“Você ainda precisará de mim, você ainda me alimentará quando eu tiver sessenta e quatro?
(“When I’m sixty-four”, Lennon e McCartney)
Literatura, facebook, salão de beleza e mesa de bar não são divãs, eu sei, todo mundo já disse. Mas — ditas, escritas, pronunciadas com puro sentimento — as palavras jamais serão em vão, mesmo que elas, eventualmente, de tão ruins, se prestem a todo esquecimento.
Ultimamente — peso da idade? — tenho enxergado a vida como se estivesse dentro de um tudo de ensaio (ela, a vida, no interior do observatório). Eu, do lado de fora, atento, há tempos, há tantos desencontros, os meus, os dos outros, muito mais apegado a eles do que sequer eu desejasse.
Crises existenciais, crises renais, crises no Oriente Médio, visitas de gente chata, notificações da Receita Federal… São coisas que acontecem com qualquer um. E, sendo eu mais um escriba qualquer a dissecar os misteriosos intestinos do viver, deparei-me com certas dúvidas existenciais de origem duvidosa, porquanto não sabia se minhas, suas ou dos outros.
O hipotético emaranhado de questiúnculas a seguir bem servirá, por exemplo, à sagacidade e observância dos escritores de livros de autoajuda se, por acaso, eles aqui comparecerem. Esses literatos gurus estão sempre dispostos a alimentarem com conselhos e exemplos que deram certo os seus leitores, cuja sede de respostas é insaciável. Tropecem, pois, os seus olhos nas pedras desse prolixo texto. Controlem o ímpeto, contudo: não o lancem pro lixo assim à primeira vista.
Não se trata de palpite, mas pura
constatação científica (li tudo na Reader’s Digest): um mentecapto sequer
desconfia que a fabulosa trama da sua vida seja, no máximo, uma fábula, um viés
por demais inverossímil aos seus pares denominados “seres humanos normais”. Não
tenho medo de barata, de escuro, de um escarro tísico, porém, o risco de
enlouquecer e sair por aí recitando as verdades que todo mundo gostaria de não
ouvir me amedronta pra caramba.
Pelo menos uma vez nesta crônica, seja sincero comigo, leitor: você
realmente me contaria — mais do que isso, você se dignaria a me advertir, com
todas as letras, com celeridade, sem celeuma e sem pena — se eu estivesse
ficando louco?
Aproveitando o ensejo, a sua atenção, a sua boa vontade, a
ociosidade do momento, a sua capacidade de enxergar e pensar (aleluia, irmão!),
eu insisto com mais questionamentos ultrapertinentes: seria besta supor que com
poesia se mudasse o mundo? Por que, na hora agá, na hora do vamo-vê, na hora
que o filho chora e mãe não escuta, na hora em que a porca torce o rabo,
ninguém dá crédito aos poetas?
A mando de quem, aliás, na maior parte do tempo, leva-se uma vida
tão ordinária com metas pela metade?
A grandiloquência de um teólogo removeria a montanha mágica de
incredulidade de um escritor agnóstico? Toma, man!
Seria ilícito não pagar a cartomante simpática, gorda, sorridente,
com sotaque cigano, se, na sua mão (na mão dela, eu quis dizer) fosse eu uma
carta fora do baralho?
Vaga-lumes inflamáveis recrutados na escuridão do dia se sujeitariam
a aquecer a marmita fria de um amor que se acabou? Se a gasolina acaba, o amor
também acaba, ora e essa! Não são ambos combustível?
E se a lua abandonasse um poema, deixaria de ser lua, deixaria de
ser rima, para ser apenas astro?
E se eu saísse no rastro da tal mulher de rua que desse expediente
numa esquina onde o vento fizesse a curva? Toda curva é uma rota? Todo espécie
de amor vale a pena? A vida é dura ou o cancro é que é mole?
O que dizer, então — o que esperar, melhor dizendo — das suas coirmãs,
as chamadas mulheres de vida fácil, viciadas nos caminhos mais difíceis? No
desentendimento delas, enquanto conversam com os espelhos, todos os caminhos
levam a Roma ou ao amor? A dúvida é puro reflexo de humanidade, é muito mais do
que as letras simplesmente invertidas.
Um balde de água fria já estava previsto naquele chá de panela?
Do ponto de vista semântico, a solidão a dois não parece
inconcebível demais?
Que tal se os casais ouvissem com atenção o que têm a dizer os
pinguins de geladeira? Advertência aos insolentes souvenires de louça: que eles
não mantenham os seus silêncios. Nada a declarar também é fuga.
Dar sobrevida a um amor que ainda respira com o auxílio dos
aparelhos de artimanhas, até que a morte os separe, seria uma espécie de
boicote infrutífero à eutanásia?
Porquinhos da Índia também estariam em extinção tal e qual o diálogo
dentro de casa?
Se ela recitasse — com cem por cento de acerto — “três pratos de
trigo para três tigres tristes” você contava logo a ela que não a ama mais, sem
travar a sua língua?
Além dos tais três tigres, seria também deveras triste acompanhar um
grande amor morrendo à mingua?
Por que, então, ficar contando com quantos paus se faz a canoa de um
amor naufragado?
Frente às corriqueiras situações de desalento e desespero que
afligem a todos nós, todo santo dia, de forma individual ou coletiva, a quem
debitar a culpa pelas tragédias anunciadas: ao iceberg ou ao Titanic?”
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