Dez culpas esfarrapadas


Eberth Vêncio, Revista Bula

Deus quis assim

Ante a imensa ignorância vicejante na humanidade, esta se trata de uma das desculpas esfarrapadas mais utilizadas quando algo vai mal ou dá errado. É desculpa boa de se dizer quando resta quase nada a se dizer. Aceitar decessos e falências como situações plausíveis já seria o suficiente, mas… Não. Há sempre que se imputar a culpa a algo ou alguém: o mordomo, o gato preto, a casca de banana, a falta de palmadas nos filhos, a internet, as redes sociais, a preguiça do baiano, o médico cubano, a alergia à lactose, o leite injetado na veia, o vírus, o cigarro, o HPV, o pagar-pra-ver, o efeito colateral do remédio, o plano de saúde, o Plano Cruzado, a imprensa golpista, o governo, a carga tributária, os embargos infringentes, o refrigerante, o contador, a estória do mensalão, o sócio, os pais, os irmãos, a cunhada, os seios caídos, o silicone industrial, a ditadura da beleza, a punheta, o excesso de carros, a obesidade, o sanduíche com bacon, o pesticida, o alimento transgênico, o efeito estufa, a estafa, o seguro desemprego, o casamento gay, o boquete, o bromato na baguete, a baixa humidade relativa do ar, a vagina seca, o pênis pequeno, o aquecimento global, a frieza sexual, o grande sertão veredas, a destruição de mata ciliar, a depilação com cera, o aparelho celular, o microondas, o bullying, o careca, a baixa estatura, o alto escalão, o mau hálito, o hábito de cochilar após o almoço, o intestino irritável, o locutor irritante, o peso da bola, a FIFA, o pênalti não marcado, o montinho artilheiro, a trave, o árbitro safado, a arbitrariedade da polícia, a barriga, a cerveja, o acaso. E quando não se encontra quem ou o que culpar, que se debite o prejuízo ao Pai. Afinal, além de nos criar, Deus quis assim.

Eu não vim trabalhar ontem porque o meu tio morreu

Havendo reincidência na mortandade de parentes, se o sujeito em questão for um funcionário da sua empresa, considere, para o seu bem e pela sobrevida da família dele (ainda que ficcional), demiti-lo. A não ser que a parentalha do sujeito estivesse dentro da mesma van que capotou no penhasco. Não foi exatamente isso que ele justificou ao dizer que o avô tinha morrido num terrível acidente? Nem lhe conto: este serial-killer doméstico vai matar a sua empresa.

Desculpe o atraso. Peguei um congestionamento terrível

Graças à falta de investimento em transporte coletivo e aos reiterados incentivos governamentais para que todo cidadão compre um carro, o trânsito nas grandes cidades realmente as deixa intransitáveis. Se a desculpa esfarrapada partiu de um funcionário, corte — com mínima culpa — o ponto pela raiz. Se a falácia proveio de um namorado, abra o olho. Se foi a esposa quem disse — socorro! — abra os dois olhos: mulheres apaixonadas não costumam atrasar aos compromissos.

Não é nada disso que você está pensando

Não sei o que seja pior: marcas de batom na cueca do cidadão comum ou dólares na cueca de um deputado federal ordinário. À exceção dos pizzaiolos, é vergonhoso ser pego com a mão na massa. É melhor nem imaginar há quanto tempo começou a traição. Não pense duas vezes, nem se sinta culpado: pé na bunda do boçal! Se ele for um parlamentar, denuncie à comissão de ética da Câmara. Vai dar em nada, eu sei. Ao menos, arruma-se alguma ocupação dentro daquele covil de carpete azul.

É a última vez que eu bebo

A ressaca física sempre antecede a ressaca moral. Difícil saber qual delas é pior. Dor de cabeça, azia, náuseas, eructações. Tudo isso é deplorável. Por outro lado, eu prefiro mil vezes vomitar a própria bile do que permanecer engolindo sapos.

É a primeira vez que isso me acontece, querida

O rol de desvantagens fisiológicas das mulheres em relação aos homens é extenso. Cólicas abdominais terríveis, sangrias inúteis, criaturas esperneando dentro dos úteros, o drama de um parto, a partilha dos bens na hora do divórcio. Não resta dúvida: Deus pesou na mão ao fazer a mulher. Porém, como se fora uma espécie de vingança, desagravo, a mulher desenvolveu o dom de iludir, o jeitinho para fingir que ama e, pior de tudo, a simulação perfeita de orgasmos (imperceptível aos imbecis). O advento das drogas para disfunção erétil foi um duro golpe à impotência. Literalmente. Sentindo-se culpados, impotentes frente às recentes demandas feministas, os homens até que comparecem. Contudo, muitos pedem pra sair, não permanecem.

Eu só tava dando uma olhadinha

A carreira no crime começa assim, nas coisas pequenas, até que o sujeito toma gosto, para de fuçar nas bolsas, e resolve roubar mais pesado, quem sabe, se candidatando a vereador, deputado, prefeito, ou coisa assim. Roubar é um vício antigo do homem, portanto, melhor nem experimentar.

Preciso de um tempo pra repensar a nossa relação

Se a gente parar pra pensar, acaba ficando sozinho mesmo. Não tem jeito. Chega um dia que o amor e o açúcar acabam. O que fazer, então: pedir emprestado açúcar à doce vizinhança ou comprar uns quilos de amor?

Hoje não. Estou com dor de cabeça

A dor de cabeça é um sintoma muito frequente que atinge mulheres (e rapazes) nas mais variadas alcovas do planeta. Frente a esta constrangedora situação, que faz supor um desinteresse sexual por uma das metades da maçã, indicam-se ações atenuantes, broxantes ou relaxantes, quais sejam, respectivamente, na ordem: ler a bíblia, ler o extrato bancário ou se masturbar.

Este ano vou mudar de vida

Como diria o poeta, é mais fácil mudar uma planta de lugar do que mudar de atitude. Portanto, não fique esperando por aquele caminhão de mudanças. Pode ser que, descontrolado, ele até atropele os seus planos, antes que o carnaval chegue. A auto-sabotagem é uma praga. Ficar culpando os outros é covardia. Faça coaching (ta na moda). Leia um livro. Ouça a sua mãe. Enfim, mexa-se. Saia do vaso. Você balança demais, de um lado para o outro, mas não é planta.”

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