Leonardo Sakamoto, Blog do Sakamoto
Poderia também tingir os cabelos brancos – que surgiram como testemunhas e hoje se juntaram em hordas a apavorar a maioria. Mas nada mudaria o fato de que estou ficando mais velho. Todos têm o direito de fazer o que quiser com sua aparência, mas – como já disse aqui – o meu conceito de envelhecer com dignidade inclui encarar de frente as metamorfoses do meu corpo. Afinal de contas, a mancha não é acidente. É vida mesmo.
Gostamos de fugir da natureza de nossos problemas, maquiando-os. No Congresso Nacional, jogando a realidade para baixo do tapete. Reescreve-se a bíblia trocando-se Jesus por Eduardo. Ou, ao contrário, avisam que apenas estão revisando de leve o texto bíblico e, de repente, Noé surge na Última Ceia.
Tramitam, em Brasília, propostas que rebatizam formas de exploração. Por exemplo, algumas delas querem alterar o conceito de trabalho escravo contemporâneo. Dizem que restringir o problema ajudará a combatê-lo.
Como se, de repente, o número de assassinato diminuíssem loucamente porque, a partir do começo do ano, só fosse considerado assassinato quando você matasse a pessoa na Praça da Sé, na hora do almoço, avisando a polícia de que isso ocorreria com certa antecedência para dar tempo a todo mundo comer seu churrasco grego com suco grátis.
No caso do trabalho escravo, querem praticamente que se traga o pelourinho e os grilhões como provas, além de um teste de DNA no sangue do chicote e uma declaração do feitor – assinada em três vias e autenticada em cartório não-abolicionista do interior do Tocantins, afirmando que o capataz fez isso em nome do dono da senzala para que o patrão possa ser devidamente julgado pelo crime. Em suma, restringir o conceito àquilo que havia quando Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon usava maquiagem a base de sebo de carneiro por aqui.
Outras propostas buscam combater o trabalho infantil, vejam só, reduzindo a idade mínima para o trabalho no país, passando dos hoje 16 (para qualquer atividade não insalubre) e 14 (desde que seja como aprendiz) para 13, 12, 11 e até dez. Assim, o que era ilegal passa a ser joia – um empurrão em nosso desenvolvimento através da adição de população economicamente ativa e a inserção cidadã através do trabalho.
Ou seja, de um dia para outro, como em passe de mágica, trocamos o rótulo da garrafa e o que era veneno passa a ser produto de qualidade. Afinal de contas, se já faz sombra, senta na guia e consegue encostar o pé no chão e não faz gu-gu, nem da-dá, pode trabalhar normalmente. Pois, como todos sabemos desde a década de 40, só o trabalho liberta.
O ideal seria se, ao invés das maquiagens, encarássemos de frente as marcas da desigualdade e da injustiça social. Pois, neste caso, as manchinhas não são inevitáveis como o envelhecimento ou marca de uma doença incurável. Mas um sintoma de que o organismo (no caso, a sociedade), anda doente.
Mas, aí, o pessoal que ganha com a venda de cosméticos vai fazer o que da vida?”
Comentários