A face oculta de Lolita



Vladimir Nabokov, em “Lolita”, falsifica a realidade de uma forma tão espantosa, tão repleta de impactos sobre a consciência dos leitores, que a própria realidade posterior já não será a mesma depois da leitura paciente e atenta do romance

Na adolescência, não descansei até encontrar um exemplar do livro. Prometia boa leitura, era um clássico precoce, todo mundo dizia. E prometia erotismo, perversão, a história da relação de uma jovem com dois quarentões, um deles seu padrasto, entre outras promessas atraentes para quem tinha 14 anos e adorava os livros. Assim que coloquei as mãos nele, logo nas primeiras páginas, senti a dificuldade que teria pela frente. Pedreira. Devia ser bom, mas à primeira vista não parecia. Claro, ali havia um modo particular de contar uma história, o que os críticos, professores e metidos chamavam de estilo. Mas precisava ser tão criptografado? Tão cheio de arrodeios e meias-voltas para chegar ao ponto? Para contar a história com fluidez? 

Saberia depois dos problemas do autor com a censura imposta pelo puritanismo americano, o mais hipócrita do planeta ao lado dos países islâmicos. Saberia depois de muita coisa sobre o refinamento do livro e daquele russo esquisito que dominava igualmente o francês e o inglês, que decidira brincar com as palavras nos livros que escrevia, e não contar histórias, apesar de que elas estavam por ali, escanteadas, sem graça por trás de tanta exuberância estilística.

Bom, quanto ao erotismo, praticamente todos os livros que já tinha lido na vida, incluindo “Polyanna” e “Reinações de Narizinho”, tinham mais sensualidade latente do que em “Lolita”. Era um livro brilhante, mas moralista, assim achava o adolescente decepcionado. Saberia depois compreender mais coisas sobre o livro, quando o releu pela primeira vez cerca de dez anos depois. Na terceira leitura, entre os 30 e 40 anos, completou o quebra-cabeças. A qualidade daquele livro era a da literatura mais generosa e honesta feita pelo bicho-homem: a de falsificar a realidade de uma forma tão espantosa, tão repleta de impactos sobre a consciência dos leitores, que a própria realidade posterior já não será a mesma depois da leitura paciente e atenta do romance.

A personagem Lolita, assim como Alice, de Lewis Carroll, e Emma Bovary, de Gustave Flaubert, morava no inconsciente da humanidade. Em meados do século passado, com a revolução tecnológica anunciada pelo rádio e televisão, as revistas de moda, biquíni, pílula, liberação dos costumes, rock’n’roll, Elvis, os Beatles, os Stones, mais cedo ou mais tarde a questão da sexualidade de crianças e adolescentes, já enunciada em profundidade por Sigmund Freud e sua filha Anna desde a primeira metade do século, viria à tona. E não só: o movimento pacifista, os protestos contra a guerra do Vietnã, Woodstock, contracultura, panteras negras, Luther King, escritores beats, movimento beatnik, acesso das mulheres à arena política e ao comando de corporações, direito das crianças e adolescentes, avanço nas conquistas para as minorias, reconhecimentos dos direitos para casais homossexuais.

Fazer uma revolução de costumes, como a que ocorreu entre 1950 e 1980 no mundo ocidental, exige profetas que se antecipam ao que acontece. Suas antenas captam os movimentos antes de se apresentarem para as multidões.

 Coisa de artista. A Dolores Haze, Dolly, Lo ou Lolita de Vladimir Nabokov livrou posteriormente incontáveis adolescentes do assédio sexual graças ao “moralismo” da história, à punição exemplar sofrida pelo personagem masculino principal, o atormentado, ansioso e antipático viúvo Humbert Humbert, assim como não se dá nada bem o estranho e enigmático personagem Clare Quilty, o outro adulto que se envolve com a adolescente.

Recusado por diversas editoras americanas, quando saiu em 1955 por uma editora francesa especializada em publicar livros em inglês, o escândalo foi de alta voltagem. Lolita, a personagem, transformou-se de imediato num símbolo da revolução de costumes em curso. O autor não conseguia compreender o sucesso, logo ele que escrevia textos sofisticados, burilados ao extremo, peças de teatro, ensaios críticos, traduções para o russo e uma biografia de Nikolai Gógol. Nada menos “popular”. Seus livros não vendiam nada, ele vivia de traduções e com o salário de professor de língua e literatura russa nas aulas que dava em mais de uma universidade nos Estados Unidos.

“A ninfeta”, como afirma Vargas Llosa em “A Verdade das Mentiras” (Editora Arx), “não nasceu com o personagem de Nabokov. (…) No entanto, graças ao romance, perdeu seu semblante vago e se personificou, abandonou sua clandestinidade nervosa e ganhou direito de cidadania”. E complementa:

 “Hum­bert Humbert não é libertino nem sensual: é apenas obcecado. Sua história é escandalosa, antes de tudo, porque ele a sente e a apresenta assim, sublinhando, a cada passo, sua ‘demência’ e sua ‘monstruosidade’ (são suas palavras). É a consciência transgressora do protagonista que confere à sua aventura a índole malsã e moralmente inaceitável, mais que a idade da sua vítima (doze anos e sete meses), que, no final das contas, é apenas um ano mais jovem que a Julieta de Shakespeare”.

“Lolita” continua sendo um desafio para leitores de todas as idades. Quase sessenta anos depois de publicado, permanece como uma leitura difícil, que exige atenção redobrada. Por exemplo: por detrás do desdém e da visão negativa e mal-humorada de Humbert Humbert sobre tudo e sobre todos, há um painel vigoroso das contradições e mesmo aberrações da sociedade americana. Os meandros, os labirintos, a confusão proposital entre a realidade e a fantasia, entre os fatos e os delírios, entre a percepção e a paranoia, não são para amadores, como aquele adolescente de 14 anos que se achava bamba em literatura porque supunha ter alguma intimidade com Machado de Assis e Victor Hugo. Os grandes não se comparam, se somam.

Nabokov é grande à sua maneira, próxima de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Herman Hesse, para quem o texto também era um tabuleiro de xadrez onde peças se movem para contar uma história. Longe do romantismo e do classicismo explícitos do francês e do brasileiro.

A versão para o cinema de Stanley Kubrick (1962) é brilhante e colaborou para popularizar o livro, entre outros motivos por causa da atuação espantosa de James Mason como o atormentado viúvo e assassino confesso (o livro é escrito na primeira pessoa, enquanto Humbert Humbert espera o julgamento por um dos crimes que cometeu). Mas, como é usual acontecer com o diretor americano, ele fez uma leitura bem particular do romance ao adaptá-lo para a tela, suprimindo detalhes e diálogos, e realçando aspectos secundários inclusive para atender ao Código Hayes e aos padrões moralistas ainda vigentes nos Estados Unidos e na Europa no início dos anos 1960.
A revolução sexual que aconteceria logo depois já estava em curso, mas os censores ainda não sabiam.”

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