"A história de uma realidade pouco conhecida: a manipulação pela polícia secreta israelense de gays palestinos que conseguem passe para circular em Tel-Aviv
Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior
Três temas explosivos constituem o excelente roteiro de Além da Fronteira,
filme modesto financiado por pequenas produtoras palestinas, por um
canal de TV e pelo Israel Film Fund, e realizado por um estreante em
longas metragens, Michael Mayer, nascido em Tel-Aviv mas que vive e
trabalha em Los Angeles há 18 anos. O filme mostra o apartheid
dos palestinos em Israel; a situação precária dos árabes homossexuais,
no caso em Ramallah; e o estado policial truculento que, com a repressão
feroz que pratica contra gays, vem afastando as melhores jovens cabeças
de um lado e do outro da região e levando moços universitários a
migrarem para longe.
Mayer
filmou com câmera na mão, em imagem digital de alta definição e em 16
milímetros, e cria uma imagem “suja”, sombria, de luz bruxuleante -
inspirada no célebre fotógrafo de O Poderoso Chefão, Gordon
Willis – para passar a idéia de marginalização, urgência, perigo e
perseguição. Ele mesmo é autor do roteiro enxuto e preciso baseado em
pesquisas que fez em Tel-Aviv e na Cisjordânia sobre a condição dos
homossexuais oriundos de famílias de classe média de um lado e do outro
da fronteira que, se por um lado é das mais fechadas que se tem notícia,
pelo outro, como mostra o seu filme, a força da necessidade humana
dribla a repressão e pode torná-la pouco a pouco porosa como vem
ocorrendo - embora a um alto custo e risco para os de Gaza e da
Cisjordânia.
A
história desta realidade pouco conhecida, da manipulação dos gays que
circulam em Israel, é focalizada no jovem palestino Nimr (Nicholas
Jacob, um bom ator), estudante talentoso de Psicologia em final de
faculdade em Ramallah, que consegue autorização para cursar, uma vez por
semana, as aulas de determinada especialização na universidade de
Tel-Aviv. Assim, atravessa a fronteira legalmente. Ninguém na sua
família sabe de sua homossexualidade e na cidade israelense ele se sente
à vontade para frequentar clubes gays, território em que palestinos e
judeus convivem pacificamente. Lá conhece o jovem advogado judeu Roy
(ator Michael Aloni), de família influente, e os dois se apaixonam.
Mas,
espionando esse pequeno mundo de pessoas vulneráveis e
semiclandestinas, a polícia secreta israelense, o Mossad, se dedica,
covardemente, a prender e chantagear palestinos gays forçando-os a
espionarem ativistas em troca de se beneficiarem com o passe para
atravessar a fronteira sem problemas.
Nimr recusa.
A
pressão para que eles se tornem colaboracionistas é o cerne da questão
no filme. Caso recusem o jogo duplo, têm cancelada a autorização e são
levados à força de volta aos territórios palestinos, onde podem ser
executados pelos próprios concidadãos: porque seriam traidores e
homossexuais. Isso ocorre com Mustafá, um personagem central no filme de
Mayer.
“Estamos
em uma região onde ninguém pode esquecer a sua origem, onde nasceu e de
onde vem”, diz um policial a um dos rapazes. “Se tiver algum problema
na ficha de segurança, sua vida (profissional) não irá longe”, ele
lembra ao jovem advogado homossexual judeu iniciando a carreira no
conhecido escritório do pai.
Mayer faz do seu filme mais que uma versão da história de amor mal parada de Romeu e Julieta. Além da fronteira
narra uma história de amor entre os dois rapazes interditada pelas
regras anacrônicas, mas vai adiante. Mostra como, no panorama da tensa
situação política permanente entre judeus e palestinos, não tem jeito:
tem-se que escolher um lado.
A
originalidade do filme é a de que não se trata de um trabalho de
convencimento pacifista tradicional repleto de boas intenções como em
outros filmes recentes: Lemmon tree e Uma garrafa no mar de Gaza entre eles. O
preconceito, por parte dos árabes, tem raízes na religião e na cultura
conservadora. Em Israel, os homossexuais parecem assimilados a
contragosto e as tintas políticas são claras. Deve-se obedecer as normas
de pureza racial. A homossexualidade é permitida desde que praticada
com parceiros judeus – ou não árabes.
Discriminação
evidente na observação cruel, e de uma grosseria ignominiosa, que o
agente policial faz ao jovem advogado: “Você não se satisfaz comendo o
pau dos gays judeus e ainda vai procurar os palestinos?”
A propósito do assunto, Mayer observou, quando esteve no Rio de Janeiro, ano passado, apresentando Além da fronteira:
“O assunto é mesmo um tabu. Conheci alguns casais gays que viviam a
mesma situação que a do filme. A forma como cada um deles administra
esses relacionamentos, com a sociedade e a família, dependia muito da
origem deles.”
Ele
lembra que há muitos palestinos como o seu personagem, Nimr, que têm de
lidar com o problema de não poder viver como cidadão em Israel. Segundo
ele, há avanços, mas muito ainda a ser feito. “Nos Estados Unidos
existe uma aparente igualdade, tolerância e respeito relacionados à
homossexualidade; mas também muito preconceito e até violência. Volta e
meia há notícias de gays espancados e ofendidos. Isso tem que mudar.”
Aos poucos muda. Além da fronteira
repercute e está para ser exibido em canal de televisão a cabo
israelense, foi premiado num festival de cinema de Haifa, cidade
progressista do país, e há diversos grupos organizados que tentam
mostrá-lo em Ramallah.
Na
África, no entanto, o atraso e o preconceito perduram e a homofobia
propicia histórias trágicas. Um dia depois de assistirmos ao filme de
Michael Mayer, no Rio de Janeiro onde se encontra em cartaz há meses,
tomamos conhecimento da história Roger Jean-Claude Mbédé, da República
de Camarões, um jovem universitário brilhante, inteligente, estudante de
Teologia e de Filosofia, denunciado como gay, julgado e mantido preso
durante um ano. Seu caso foi monitorado por advogados ligados aos
movimentos de direitos humanos na África que pouco conseguiram fazer
pelo rapaz.
Mbédé
foi humilhado, torturado, renegado e expulso da sua aldeia quando os
vizinhos tomaram conhecimento da sua condição. Tornou-se pária, não foi
possível tirá-lo do país e levá-lo para a Europa. A família,
envergonhada, escondeu-o dizendo-se desonrada. Mbédé adoeceu gravemente,
foi dado como desaparecido durante meses e não foi hospitalizado.
Morreu há uma semana.
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