50 anos do golpe: Arte, cultura, placidez e ebulição em 1964

"A mostra "Arte e cultura no ano do golpe" aviva a memória dos mais velhos e informa às novas gerações sobre a vida cotidiana no ano do golpe civil militar 

Léa Maria Aarão Reis, Carta Maior


As imagens do acervo de vários artistas e intelectuais brasileiros do Instituto Moreira Salles/RJ, mostrando o que se passava no ano de 1964, no país, às vezes são de uma placidez extraordinária. A imagem de publicidade, de autoria de Chico Albuquerque, um dos precursores da fotografia de propaganda moderna no Brasil, onde se vê uma família brincando na praia para vender um novo condomínio. A imagem da campanha de lançamento da Kombi, poucos meses depois da apresentação do Fusca. A foto do maestro Radamés Gnatalli gravando em estúdio, Jacob do Bandolim em arranjo orquestral.

Publicidade da Kombi
Imagens das noites do verão de 64, concorridas e animadas, no sobrado da Rua da Carioca, no Centro do Rio, onde Cartola, compositor maior da Mangueira, recebia os amigos no seu botequim misto de pensão, o Zicartola, no qual Paulinho da Viola estreava despontando para o estrelato.

Zicartola

Bossa, fossa, Tom, Nara Leão, Maysa. Baden Powell convidado e partindo para gravar na França. Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga com sua efervescente Editora do Autor. Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, o escultor Ceschiatti, Clarice Lispector lançando dois livros em 64 - A paixão segundo G.H. e Legião estrangeira –, e Otto Lara Resende publicando o romance O braço direito.

Millor Fernandes, demitido do Cruzeiro no fim de 63, no ano seguinte cria a Pif Paf em companhia dos humoristas Fortuna, Jaguar, Claudius, Sergio Porto e Ziraldo. Escreve: “Se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”. O governo golpista fechou a Pif Paf e proibiu a democracia. A publicação durou apenas oito números. No último, apresentava um concurso de beleza com a fotomontagem de Castelo Branco e Carlos Lacerda travestidos. Um, de miss Castelinho atacando a dentadas a outra candidata do certame, sua ex-amiga, miss Carlota Corwina. Mas “o concurso tinha mixado”, anunciava a Pif Paf.

Revista Pif Paf
 Todas estas informações avivam a memória dos mais velhos e informam às novas gerações como transcorria a vida cotidiana, em especial no Rio de Janeiro e Brasília, no ano do golpe civil militar. O diretor de cinema Cacá Diegues estreava seu filme Gangazumba na mesma semana do histórico comício de Jango, na Central.

Em maio, Glauber Rocha empolgava o Festival de Cannes com Deus e o diabo na terra do sol depois de entusiasmar os críticos progressistas em sessão fechada, no Rio de Janeiro, na manhã do dia do comício das reformas de base.

Em junho, Ruy Guerra recebia o premio máximo do Festival de Berlim com Os fuzis.

Por outro lado Leon Hirzsman via o seu curta-metragem Maioria absoluta proibido pela censura. Ele só seria liberado dali a 18 anos. E as filmagens do clássico Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, no engenho Galileia, em Pernambuco, eram interrompidas no próprio dia do golpe, por tropas do exército. O documentário só viria a ser mostrado vinte anos depois.

As imagens do fotógrafo Jorge Bodansky, então aluno da Universidade de Brasília, evocam uma atmosfera tensa, com os estudantes em vigília na noite de 31 de março, na capital da República, ouvindo as notícias em rádios de pilha. As passeatas, barricadas, o exército na rua. “E a nossa ingenuidade”, Bodansky lembra hoje, “com a certeza de que os soldados estavam ali para nos proteger.” Ele conta mais: “Ao dividir, por acaso, o elevador do prédio onde morava minha tia com Tancredo Neves, na semana do golpe, aproveitei para perguntar quanto tempo achava que duraria aquilo. O deputado respondeu: ‘põe dez anos aí..’

Foto de Jorge Bodansky
 “1964 foi um daqueles anos notáveis em que tudo parece acontecer,” observa Paulo Roberto Pires, jornalista, escritor e curador da mostra "Em 1964 –  arte e cultura no ano do golpe" do Instituto Moreira Salles/RJ. Segundo Pires, ali houve a confluência de diversos processos, “mas não necessariamente políticos. A exposição é um mergulho em 64, para que a gente entenda a complexidade do período. Um dos seus objetivos é mostrar como um ano excepcional é também banal, porque a história acontece assim.”

Abaixo, a conversa da Carta Maior com Paulo Roberto Pires.

Como crítico, você diria que esta produção de 64 foi uma espécie de turning point na nossa cultura? Ela seguia a integração do Brasil ao mundo, naquele momento?
Acho que o Brasil estava ligado no mundo porque estava ligado em si mesmo. É um ano em que o Brasil olha para o Brasil. Em Cannes, temos dois filmes na mostra competitiva – Vidas Secas e Deus e o Diabo  - e um na semana da crítica  - Ganga Zumba, todos profundamente ligados à reflexão sobre o país. Nesse sentido, a França também descobria o Brasil. Foi o ano em que Baden Powell grava seus primeiros discos franceses e quando um tímido e genial artista brasileiro, o fotógrafo Alécio de Andrade, se muda para Paris e começa a trabalhar na Magnum. Havia conexão porque havia auto-reflexão.

A ditadura dava os primeiros passos. Ainda não mostrava toda a sua ferocidade verificada logo depois. Você acha que havia uma expectativa de o regime autoritário não perdurar  - e isto se reflete numa certa leveza, digamos assim, da produção cultural de 64?

É unânime que, no começo, achava-se a ditadura um tropeço que seria facilmente superável. Ao mergulhar no ano -  e a exposição se complementa no site www.em1964.com.br - a gente percebe a euforia pré-golpe dos que acreditavam num país progressista, determinado a enfrentar suas contradições, a perplexidade relativa do momento imediatamente posterior ao 31 de março e, só no fim do ano, a gravidade do que acontecia – quando, por exemplo, estreia o Opinião. O que se produz nesse ano é de certa forma, ainda livre do terror de Estado que se instalaria.

Qual o legado, Paulo, que esta produção tão rica e tão brasileira, tão nacionalista (no sentido sul americano) nos deixou e nos marca, 50 anos depois?

Ali estão algumas linhas mestras das décadas seguintes. É curioso notar que 1968 é muito mais emblemático no que diz respeito à herança cultural. Mas muito de 68 começou a acontecer em 64. É um ano de inícios e, curiosamente, o início de uma barra pesada.
É simbólico o clima de despreocupação da foto de publicidade da família brincando, na praia. Você acha que a ideia do temos que tocar a vida, naquele ano, significava que uma grande parte da sociedade civil urbana, da classe média, estava de acordo com o golpe - como se sabe hoje? A produção cultural daquele ano e a sua despreocupação não refletem este ânimo, nas grandes cidades ao menos? E não se reforça, através dela, a percepção de que a ditadura instalada em 64, com o golpe ao governo do presidente Jango foi militar e civil?

Foto de Chico de Albuquerque
A foto é de Chico Albuquerque para um empreendimento imobiliário no litoral de São Paulo. Era um Brasil que, sem dúvida alguma, não estava muito preocupado com o movimento e até efetivamente o apoiou, pelo menos em seu primeiro momento. Era um ano em que, até março, antes do golpe, estava todo mundo acreditando numa democracia, ou em um projeto de Brasil que mexesse na estrutura do país. E que no fim deu no que deu… É um ano complicado. Se a complexidade de 1964 nunca será totalmente explicada, ela ganha, 50 anos depois, mais um importante espaço de discussão no IMS.

Pires completa: “Os anos importantes da história são aqueles em que as coisas grandes estão acontecendo e, ao mesmo tempo, a gente toca a vida. E a cultura tem um papel importante não só como resistência, mas também como ambiência”.

No dia 11 de dezembro de 1964 estreava o show Opinião, um marco histórico no processo cultural e político do país. Os textos de resistência desse autêntico manifesto eram de Paulo Pontes, Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa. Os atores, do Arena do Rio e do Centro de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes (UNE) já fechada pelos militares.

Foram assistir a esse confronto direto com a ditadura mais de cem mil espectadores. Então, falava-se em “dever cívico”, ir ao teatro do shopping center Copacabana.

Nove meses antes, no entanto, a ditadura já tinha mostrado suas garras. “Cálculos falam em cinco mil presos nas primeiras semanas após o golpe,” escrevem os professores de história Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, no seu livro l964 – O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil, da Ed. Civilização Brasileira, recém publicado“As perseguições, as prisões, entre outras arbitrariedades, se tornaram regra desde esse momento inicial, ao contrário do que às vezes se proclama.”

 Créditos da foto: Jorge Bodansky

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