Cinema, Propaganda e Ideologia

"A máscara de isenção que os blockbusters hollywoodianos carregam os tornam os mais eficazes instrumentos de divulgação da ideologia sistêmica: supremacia do dinheiro, triunfo do indivíduo contra o coletivo e a visão do exército americano como virtuoso e portador da verdade

Leandro Dias, Pragmatismo Político 

É lugar comum nas análises dos regimes fascistas e bolcheviques a ênfase em seus respectivos aparatos de propaganda. Naturalmente, é difícil falar da Alemanha nazista sem falar de Göebbels ou da relevância que a propaganda ideológica tinha para Adolf Hitler no seu livro Mein Kampf (Minha Luta). Difícil falar de Joseph Stalin sem mencionar o culto à personalidade e às determinações do Departamento de Agitação e Propaganda, fundamentais aos preparativos para a Guerra que já esperavam.

Em ditaduras não é tão difícil identificar a vontade do governo em seus projetos de propaganda explícitos, sejam eles filmes, livros ou arte em geral.

 Porém, se não é difícil notar as obras claramente de propaganda em regimes autoritários e censores, é, outrossim, mais interessante perceber a propaganda do sistema em obras que não foram produzidas diretamente pelo aparato estatal, birôs de propaganda ou Ministérios da Verdade de países que se propõe propagandísticos.

Quando ocorrido o 11 de Setembro quase que imediatamente o governo americano se reuniu com diretores de cinema de Hollywood para determinar o que fazer, que caminhos tomar para a produção cultural norte-americana (1).

Com a ousadia e o impacto dos atentados de 2001, extrapolando qualquer blockbuster de Hollywood anterior, e somada a uma cobertura midiática já espetacularizada pelo consumismo visual, mas agora chocada pelo primeiro ataque militar ao país em décadas, rompia-se no campo midiático a fronteira entre a ficção e a realidade, entre documentário e fantasia, entre propaganda e enredo. Era fundamental para o “regime” ameaçado estabelecer – diante de um ataque – o que mostrar e exaltar, o que esconder e abafar, de forma a angariar o ânimo necessário para realizar as necessidades do regime, como num período de guerra.

Assim, voltando exatamente para a Primeira Grande Guerra, na época os EUA criaram o Comitê para Informação Pública (2), dedicado a fazer propaganda pró-governo e anti-alemã no cinema e rádio durante todo o período da Grande Guerra. Seu papel, além de produzir diretamente peças artísticas falando bem das causas governistas, era viabilizar que filmes pró-americanos tivessem o máximo de repercussão e financiamento possível. O Comitê determinaria o que era “pró-americano” e o que não era.

Desta forma, em 1915 surgiu um pioneiro filme de guerra chamado O nascimento de uma Nação, dirigido por D. W Grifith. Com grandes efeitos visuais para a época e impressionante número de figurantes, a obra foi um sucesso estrondoso de bilheteria, mesmo usando atores brancos pintados de preto para o papel de negros e uma evidente apologia à Ku Klux Klan, organização racista americana. No entanto, um aspecto interessante do filme é seu pioneirismo em outra área: foi o primeiro filme a ter consultoria e apoio do West Point, também conhecida como Academia Militar dos Estados Unidos.

O exército não só forneceu artilharia, mas deu consultoria para as cenas de guerra, emprestou canhões e soldados e não teve nenhum problema com o conteúdo racista e o claro apoio à KKK no enredo. A renda deste filme financiou a Klu Kux Klan por muitos anos (3).

Desde então, a colaboração do exército e órgãos governamentais à indústria do cinema americano tem sido constante, pautando filmes e utilizando o cinema como potente arma de propaganda das idéias e políticas do governo.

O objetivo principal é o uso da credibilidade e “isenção” do cinema e mídia privados para fomentar propagandas pró-sistema, tentando criar novos conceitos, arraigar existentes, demolir opositores políticos e “subversivos”, criar consensos favoráveis à ideologia dominante do período, sem, no entanto, parecer usar a “máquina estatal” para tal. Isto é, faz propaganda do “regime” sem precisar de um Göebbels ou um Departamento de Agitprop determinando explicitamente o que falar nas mídias.

A Segunda Guerra reforçou essa aliança. A série de documentários Why We Fight (1942-1945) foi comissionada diretamente pelo governo americano e teve como diretor ninguém menos do que o laureado com o Oscar Frank Capra.

Era uma tentativa de fazer documentários aliados que ficassem à altura dos de Leni Riefenstahl (4) para a Alemanha Nazista. A série também foi um sucesso de bilheteria.

Num lado mais lúdico, Walt Disney e sua corporação formaram um grande veículo privado para propaganda governamental, desde o Pato Donald explicando a importância de pagar impostos em The Spirit of ’43, até o mesmo pato ridicularizando o nazismo em Der Fuhrer’s Face. Num lance mais “sério” temos o Education for Death (Disney, 1943), animação sobre uma criança no regime nazista, de 1943, ambos desenhos bem sombrios para crianças segundo os padrões de hoje. Junto com Mickey Mouse, Donald é o personagem mais popular da Disney, talvez por isso seja exatamente o desenho que revela um discurso ideológico muito mais marcante, uma representação – às vezes muito clara – da ideologia pró-regime que queremos apresentar aqui:

Donald trabalha feito um condenado, mas está sempre em dívida com o seu tio, que frequentemente usa este argumento para forçá-lo (chantageá-lo) em alguma aventura de pilhagem de terras “exóticas” e enriquecimento (do Patinhas é claro). Por mais que Donald trabalhe, jamais fica rico, se considera azarado, invejando seu rival Gastão, rico e “sortudo” sobrinho puxa-saco de Patinhas. Seu fracasso é atribuído a uma falha pessoal e não a um problema sistêmico. Há até um panfleto clássico underground feito no Chile de Allende, explorando em mais detalhes as sutilezas (ou não) das histórias de Pato Donald e Tio Patinhas na América Latina. Para Ler Pato Donald (1972), ainda que dotado de exageros e um pouco paranóico (5), é uma obra que mostra outras nuances profundas do discurso pró-regime e elitista e vale ser lido.

O filme Os Boinas Verdes (1968) foi idealizado e dirigido por ninguém menos do que John Wayne, consternado com a imensa oposição à Guerra do Vietnã.

 A película foi largamente financiada, apoiada e diretamente aprovada pelo então presidente americano Lyndon Johnsson, com a clara intenção de ser um filme de propaganda pró-regime, no melhor estilo soviético. A ideologia do filme é a mesma dos belicosos dirigentes da direita americana, largamente apoiados pela indústria bélica, em prol de uma guerra aberta aos comunistas, no velho espírito da Guerra Fria.

Como este filme de John Wayne há uma profusão de filmes com larga influência militar e ideologia pró-americana, isto é, consumista, belicosa, ocidental e, em maior ou menor grau, anti-comunista. A lista é tão extensa que fica difícil nomear todos os filmes, mas alguns são tão emblemáticos que é importante expô-los.

Na série Rambo, mas especificamente em Rambo 3 (1988), o exército americano usa um mercenário (Silvester Stallone) para ajudar mujahedins afegãos, conhecidos como Talibãs, retratados no filme como “defensores da liberdade”, para expulsar o imperialismo soviético. O filme, assim como Rambo 2, faz uso maciço de bases militares, aviões, helicópteros e armamento oficial. Lembrando que Bin Laden nesta época era fiel aliado ocidental. É importante notar que, apesar de já ser prática comum na época, o uso de mercenários privados em ações militares “extra-oficiais” era algo ainda mal visto por militares (7).

Top Gun (1986) retrata toda a evolução de dois jovens dentro das fileiras da Marinha americana, da melhor maneira que Hollywood sabe fazer. É difícil não ver este filme como uma obra de propaganda militar, como relata o documentário Hollywood and the Pentagon: A Dangerous Liaison (2003). Seu sucesso foi tão grande que a Marinha colocava bancadas de recrutamento na porta do cinema, com grande êxito. Novamente as forças armadas contribuíram com instalações, equipamentos, pessoal e “sugestões de roteiro”.

Independence Day (1996) é um filme sobre invasão alienígena, mas seu discurso e ideologia são extremamente terrestres e não ficcionais. É outra obra com largo uso de recursos, consultoria e equipamento militar. Retrata a invasão dos EUA por aliens que querem exterminar a humanidade. O próprio presidente dos EUA é voluntário para entrar num avião e lutar contra alienígenas, após longo e patriótico discurso. O interessante lembrar é que este é um daqueles filmes no qual a bomba atômica salva a humanidade: é um míssil atômico, carregado por um suicida (“mártir”), que termina por destruir a super nave alienígena e salva a América. Guerreiros suicidas ainda não estavam em baixa como no pós-11 de setembro.

Impacto Profundo (1998), Armaggedon (1998), O núcleo (2003) e Sunshine: Alerta Solar (2007), apesar de bem diferentes entre si, são filmes, assim como Independence Day, nos quais a bomba atômica salva a humanidade da aniquilação. Vale lembrar que o produtor de Armaggedon é o mesmo de Top Gun e Falcão Negro em Perigo (2001), sendo aquele o mais propagandístico desses filmes que pervertem o uso da bomba atômica.

Essa inversão de propósito, fazendo algo servir ao exato oposto do que se propõe, lembra os argumentos do filósofo Slavoj Zizek sobre a falta de substância das coisas nos tempos atuais: café sem cafeína, açúcar light, “invasão de defesa”, guerra sem vítimas e, portanto, o uso da maior arma de aniquilação humana já inventada – a bomba atômica – convertida em salvação única, desprovida de seu caráter destruidor; a bomba torna-se a ponta da lança que aniquila o dragão, a única esperança de defesa e resistência. Qualquer semelhança com George Orwell não é mera coincidência. Aniquilação é Salvação.

Ainda falando de Zizek, vale citar sua análise do filme 300 (Zack Snyder, 2006), inspirado no quadrinho de Frank Miller. O autor inverte a noção comum de que se trata de um filme apologético pró-americano, anti-islâmico (iraniano), militarístico, retratando a supremacia da guerra frente à diplomacia, num heroísmo americano contra o domínio de bárbaros. Este filme, para o filósofo, na verdade retrata uma rica superpotência imperial (Pérsia), com um exército indestrutível, tentando invadir uma pobre região montanhosa habitada por fanáticos disciplinados. Seus métodos são a intimidação, compra de políticos e figurões e a contratação de mercenários de todas as partes do mundo para formar um exército invasor em terras distantes da sua. A cultura persa é retratada em mostruosidades exóticas, festas promíscuas, com marcante falta de valores e uma moralidade comprável com dinheiro. Esparta, por sua vez, é uma nação pequena, com um rei idealista, avesso às politicagens corruptas de interesseiros nobres e ao misticismo pessimista dos oráculos. Dotada de um pequeno exército, o que lhe resta é a disciplina e a crença fanática em seus valores e idéias.

Para Zizek, a Pérsia de 300 representa o imperialismo americano: Xerxes tentando seduzir e corromper os gregos é como um Ronald Reagan tentando seduzir e corromper Sandinistas ou lideranças sauditas. Esparta promete acabar com o misticismo, defendendo um reinado de razão e democracia, no melhor estilo iluminista, contra as barbáries sem valores do mundo Persa. Não foi à toa que os revolucionários comunistas alemães se proclamaram “Liga Espartaquista“, diz Zizek.

Apesar da pertinência dos argumentos de Zizek, o filme não foi feito para acadêmicos e pessoas mais interessadas em tramas complexas e reflexão profunda. É um blockbuster de verão. A mensagem que fica para o menos atento, interessado apenas num “pipocão” de fim de semana para entreter sua monótona vida cotidiana, é a versão superficial do filme: a supremacia ocidental frente ao barbarismo oriental. Os inimigos usam turbantes e aparatos exóticos, falam com sotaque ou são ininteligíveis, são infinitos e estão em todo lugar (clássica paranóia direitista contra imigrantes); a política e a diplomacia são corruptas (de ambos os lados), só o exército é virtuoso e dotado de uma verdade que faça sentido. Tanto que o filme repercutiu muito mal no Oriente Médio, inclusive com declarações públicas de Ahmadinejad (9).
Porém, essa clara ambiguidade do filme talvez demonstre a sutileza apologética do cinema ideológico que é importante revelar, dando razão à narrativa de Zizek: na superfície faz um discurso, enquanto na substância o filme traz completamente diferente, muitas vezes até oposto ao que vem na superfície – algo que torna o filme ideologicamente brilhante.

Muito menos sutil e ambíguo é o Falcão Negro em Perigo (2001). Nele, a resistência somali contra a invasão dos EUA (exército americano sob farda da ONU) durante a sua guerra civil em 1993 é vilanizada e o sangrento massacre em Mogadishiu, transformado num heróico épico de resgate paladínico, com direito a helicóptero tocando “Hell’s Bells” do ACDC, torna novamente turva a divisão entre ficção e realidade: “I won’t take no prisoners, won’t spare no lives“. Nada é problematizado, nem o papel dos EUA, nem as intenções dos inimigos, os somalis são todos os bestializados, sem nome e sem importância, querem apenas matar os mocinhos.

A bestialização do inimigo lembra ainda de outro blockbuster largamente patrocinado pelo exército americano: Invasão do Mundo: a Batalha de Los Angeles (2011). Se lembrarmos que a palavra alien em inglês também se refere ao imigrante ilegal, esse filme se revela um dos mais conservadores – para não dizer racistas – da cinematografia norte-americana mais recente. Os inimigos são quase invisíveis e indestrutíveis, bestas que vêm de todas as partes, sem valores ou origens identificáveis (como “chicanos” que podem vir desde a Bolívia até o México, não importa), seu objetivo é apenas destruir a América. Os diálogos do filme são quase de manuais militares e, junto Top Gun e Transformers(Michael Bay, 2007), pode ser considerado um dos filmes mais apologéticos do exército americano que se tem notícia.

Transformers, por sua vez, é tão propagandístico e apologético que faz Alexander Nevsky de Eisenstein parecer uma obra de ficção completamente sem relação com o stalinismo. É um festival de recursos, aparato, discursos e argumentos pró-americanos, de um militarismo gritante. Como Top Gun (10), é praticamente um vídeo de recrutamento, com direito a um jovem conhecendo uma bela moça enquanto se torna um “soldado a serviço dos Transformers”. Mesmo porque os vídeos oficiais de recrutamento não estão tão longe de um filme hollywoodiano:

https://www.youtube.com/watch?v=TGbvN0Hq1Dk

https://www.youtube.com/watch?v=D_OiawVBUgI

Já que estamos falando de super heróis vejamos a nada subliminar posição do Homem de Ferro (2008) e a nova série de filmes do Batman (2005-2012).

Ambos os personagens principais são bilionários enriquecidos com dinheiro da fabricação de armamentos para o complexo industrial-militar norte-americano e ambos são auto-proclamados defensores da justiça. Não há aqui a problematização dessa maneira de enriquecimento, embora qualquer um que conheça minimamente como se faz dinheiro na indústria de armamentos (11) sabe que não há nada de nobre ou heróico em vender armamentos militares. No fundo a lição que fica é algo como a “riqueza é uma virtude por si só”, independente de onde veio o dinheiro."

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