"Religiosos
dentro de partidos ou apenas representando correntes sacras conseguem a
mágica de transformar fervorosos progressistas em pios conservadores.
Época
eleitoral, promiscuidade concorrencial. No Brasil, foi dada a largada
para negociações na penumbra, onde todos os gatos são pardos. Entre os
grupos mais cortejados, estão os religiosos. Organizados dentro de
partidos ou apenas representando correntes sacras em templos e púlpitos
eletrônicos, conseguem a mágica de transformar fervorosos progressistas
em pios conservadores. Socialistas se recusam a apoiar o direito das
mulheres à interrupção da gravidez, em aberta contradição com o
pensamento libertário que os originou. Neodesenvolvimentistas não se
envergonham de ficar em cima do muro quando se trata de defender as
pesquisas com células-tronco. Todos comparecem a cultos variados, onde
aparecem compenetrados (sic), com evidente hipocrisia. Nenhum deles se
atreve a condenar o ensino de religião em escolas públicas. Tudo para
não enfurecer o bispo fulano ou o cardeal sicrano, que poderiam
roubar-lhes preciosos segundos na televisão ou influenciar o voto de
muita gente. Renunciam à coerência para prestar vassalagem ao atraso. De
onde vem tanto poder ? Quando trata de religião, nosso país é
cínico. Embora o artigo 19 da Constituição brasileira garanta a
laicidade do Estado, o Preâmbulo da nossa Carta Magna pede a “proteção
de Deus” para os representantes do povo que elaboraram o documento. A
pergunta óbvia é: a que Deus se referiam os nobres parlamentares ?
Conto, a propósito, uma historinha, citada no livro Pimentas, do Rubem
Alves, entre outras coisas teólogo cristão heterodoxo. Ela aparece no
livro de Juízes. Guerreavam as tribos de Guilad e Efraim. Derrotados, os
efraimitas temeram ser exterminados. Imaginaram um artifício. Tentariam
atravessar a fronteira à noite, juntando-se aos guiladitas. Os guardas
fronteiriços desconfiaram e pediram que aquela gente falasse a palavra
Shiboleth. Sabiam que os efraimitas não conseguiam pronunciar o som
“sh”. Dito e feito. Os espertinhos foram flagrados e, diz o texto
sagrado, exterminados. Cerca de 42 mil deles foram decapitados e seu
sangue “misturado com as águas do Jordão”. Não existe no texto sagrado,
inspirado por Deus para exemplo, nenhuma condenação dessa matança, a
despeito do mandamento “Não matarás”. O que prova, segundo Alves, “que o
povo de Deus não dava muita bola para os mandamentos de Jeová. E parece
que ele mesmo não levava a sério os mandamentos que ele mesmo
promulgara, porque os morticínios, por sua ordem, são assombrosos”. É a
esse Deus que o pessoal em Brasília pediu proteção ? Se não a ele, a
qual ? Ao que sugeriu que pais e mães apedrejassem filhos rebeldes até a
morte (Deuteronômio XXI, 18-21) ? Como ficaram os ateus, igualmente
cidadãos com plenos direitos, que não precisam desse expediente para
inspirar-se ?
Nossos espaços públicos são invadidos por símbolos
religiosos, agredindo a neutralidade que os deveria caracterizar, e a
coisa passa por normal. Crucifixos estão pendurados em tribunais de
todas as alçadas. Praças exibem imagens de santos e símbolos de
religiões não-cristãs (como uma grande Chanukiá, na praça Cardeal
Arcoverde, em Copacabana). A Assembleia Legislativa do Rio cede espaço
para cultos evangélicos. É uma ocupação absolutamente indevida, que
poucos ousam contestar.
A invasão sacra chega a parecer menor
quando se compara aos feriados religiosos. Qual é o sentido de se
decretar feriado nacional para se homenagear personagens ou referências
da mística religiosa ? Qual é, por exemplo, o significado do feriado de
São Jorge ou da Sexta-feira da Paixão para um muçulmano, um budista, um
judeu ou um ateu ? Todos com iguais direitos constitucionais, mas uns
mais iguais que os outros. As correntes hegemônicas se impõem,
garantindo predominância no mercado da fé e influência na vida política.
Foi exatamente isso que aconteceu ano passado, quando a prefeitura do
Rio decretou feriado municipal durante a visita do papa Francisco à
cidade. Parou-se tudo para homenagear o líder de um segmento religioso,
não por acaso o mais numeroso em nosso país (embora esteja perdendo
espaço, cada vez mais, para outras denominações cristãs). Cruzamento
venenoso entre os espaços público e privado.
Ser religioso e
participar da política não é, em si, negativo. A História tem exemplos
para todos os gostos. A Igreja católica espanhola, associada ao grande
latifúndio e à monarquia reacionária, foi punida pelos camponeses
durante a Guerra Civil dos anos 1930. Imagens de santos foram fuziladas
por milícias camponesas, partes do clero foram submetidas a tribunais
revolucionários. Na América Latina, o padre colombiano Camilo Torres
pegou em armas contra as oligarquias de seu país. Dom Helder Câmara e o
padre Peyton pertenciam ao mesmo tronco, mas nada tinham em comum. O
problema, me parece, são os lobbies, que retiram a fé do âmbito pessoal e
a utilizam como ferramenta para impor agendas conservadoras a toda a
sociedade. Não raro com expedientes terroristas. Nas campanhas
eleitorais, subvertem o discurso político, mascarando-o com citações
religiosas e confundindo o eleitor, que parece estar votando no clérigo e
não no representante de uma corrente de ideias.
Já mencionei
antes a imensa dificuldade que boa parte das religiões tem ao lidar com
as questões do sexo e do desejo. Preferem reprimir, sublimar, punir,
discriminar. Está em cartaz um belo filme do John Turturro, com um
impecável Woody Allen no elenco. Em Amante a domicílio, que se
passa num bairro novaiorquino com maciça população judaica
ultraortodoxa, há uma cena inesquecível. A viúva de um rabino cai na
rede do falso garoto de programa vivido por Turturro, que se faz passar
por curandeiro espiritual. O acaso entra em cena. O “negócio” cai por
terra quando ele se apaixona pela viúva. Ao encontrá-la e começar uma
“massagem terapêutica”, ela começa a chorar convulsivamente. Perplexo,
ele a ouve dizer que nunca tinha sido tocada. Reparem bem: tinha uma
penca de filhos e jamais tinha se sentido tocada ! O finado marido a
usava apenas para cumprir uma ordem divina, sem carinho, sem amor, sem
direito à comunhão do sentimento com o prazer. Não pensem que isso é
ficção. Tanto faz casamento para procriação ou proibição de casamento.
Ambos são vestibulares para a melancolia e a solidão. Um monumental
desserviço de religiões à ligeira passagem de todos nós pela Vida.
A
tudo isso, prefiro a beleza da dúvida, que a ciência estimulou. Como
bem lembrou Marcelo Gleiser, o físico poeta, “vivemos dentro de um útero
azul, um oásis de vida em um Cosmo destituído de vida, frio e hostil”.
Trazemos carimbadas em nossos corpos poeiras de estrelas, memórias
viajantes de bilhões de anos. Um quintanar: Se as coisas são
inatingíveis ... ora ! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os
caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas. Aproveitemos a
chama fugaz, sem superstições ou aflições herdadas dos antepassados que
tinham medo das tempestades. É essa a parte que nos cabe neste
latifúndio."
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