Pelo direito de um homem acordar mal humorado


, Revista Bula

"Eu não sei se vocês pegaram essa época mas, quando eu era um menino estudante, sempre que as aulas retornavam os alunos eram obrigados pela professora de português a escreverem uma redação com o tema “Minhas férias”, para contar o quanto tinham sido legais e proveitosos todos aqueles dias longe da escola.

Uma vez que quase sempre as minhas férias eram passadas na roça — moleque pegando berne, chupando manga, pescando traíras, discutindo a relação com as cabritas, patinando em bosta de vaca — suponho que as minhas redações foram se tornando, a cada temporada, mais entediantes à professora, da mesma forma que eu achava um porre decorar as conjugações verbais feito um papagaio quando enfia uma bíblia no sovaco.

É bem provável que haja uma crise irreparável no mercado de tintas nanquim e penas de ganso (naqueles dias, pirralhos cruéis que éramos, alguns de nós se ocupavam em depenar o sobre-cú dos gansos pelo mero prazer da judiação, ou então, pela obrigação de escrever todo o conteúdo programático à mão), pois os atuais recursos tecnológicos avançadíssimos deixam a meninada com uma leseira danada: preguiça de ler, de escrever, de pensar, de levantar do sofá.

Não. É tudo mentira. Nunca tive pena de escrever. Não sou assim tão velho quanto me sinto. Nem jamais judiei de passarinho, ainda que ele fosse um ganso. Nunca atirei pedras numa ave, a não ser os petardos de sábado à tarde na pombinha da Gorete, uma dançarina que fazia cover de chacrete, imitava como ninguém a Rita Cadilac ao expor o virabrequim dentro de uma das gaiolas do Buraco Azul, decadente cabaré da cidade onde se adquiriam chatos, decepções e um bocado de experiência de vida.

Vocês têm razão: memórias são um saco. Detesto biografias, principalmente, a minha. Não estou aqui para descrever com floreios os equívocos hormonais da minha juventude fuleira em Buraco Azul. Por outro lado, já que me toleraram até este ponto, vou lhes contar quase tudo o que não farei durante as minhas próximas férias. Quem se importa com o que eu faço, com o que eu deixo de fazer?! Ora, tenham a santa paciência: tampouco, eu me importo com os seus devaneios, leitores, e eles não são poucos!

Mesmo com este entrevero, continuemos: eu tenho um velado fetiche pelas listas. Então fiz uma em que anotei um corolário de proposituras (favor, não confundirem com prostitutas) que será uma tentativa honesta de rompimento com o cotidiano, um lembrete para que eu fuja da moenda diária das roldanas e engrenagens do caos urbano, um cenário não somente embrutecedor, desumanizante, mas, viciante como uma pedra no meio do caminho. Aliás, de fato, no meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. E agora, Carlos Drummond de Andrade? O que fazer se não me sinto mais poeta?

O meu destino será onde vocês quiserem que ele seja. Pra mim, tanto faz. Só não revelo aqui, neste parágrafo, o logradouro completo com CEP e tudo mais, porque não tenho vontade de ser encontrado, que venham me fazer companhia, estorvos a interromperem o meu nem-tão-inflexível-assim compromisso de me desligar das mazelas do dia a dia.

Embora eu jamais tenha dito isso nesta crônica, até este ponto, eu torno a dizer, tão somente a título de trocadilho, de incoerência e de prolixidade — atributos dos quais não me orgulho nem um pouco — que, pela primeira vez na vida, desobedecerei a imposição das minhas saudosas professoras de português (que Deus reserve o melhor lugar do céu a elas; se não for pedir muito, Senhor, acomode as velhotas em poltronas nas janelas) para comunicar que não escreverei mais redações, muito menos crônicas, para comentar como foram as minhas férias de verão na fazendinha da vovó.

Aliás, a titulo de nulidades, dir-lhes-ei como não serão as minhas férias onde quer que elas aconteçam, e aquilo tudo que pretendo desfazer ou não fazer durante o meu suíno retiro espiritual, que poderá durar sabe-se lá quanto tempo — se acaso eu tomar apego pela solidão — num dos mais longínquos esconderijos do mundo, quem sabe, na minha mente que jamais mente, um refúgio onde haja uma modesta e limpa cabana desprovida de percevejos, construída à lavra de um rio livre de cadáveres, titica e sofás, edificada com a madeira de demolição dos meus dramas diários.

Eu sei que ficou tudo muito confuso nessas linhas que, contudo, não serão mais confusas que eu mesmo, mas — relaxem — já estou terminando o texto. Quem quiser que me desacompanhe. Não importa. Não quero companhia alguma, senão dos meus ais, de um violão e de um blister de dipirona, caso me doa o estômago de tanto rir de mim mesmo. Mesmo sem pena e nanquim, anotei tudo numa folha de jornal para embrulhar bananas.

Lista de coisas para não fazer nas férias

1 — Sentir culpa por ter acordado mal humorado. Quero todo o mau humor que tiver direito.

2 — Dirigir um carro numa cidade de perdidos. Quero me dar ao luxo de caminhar descalço pelo regaço e tentar outra vez, pois a água limpa ainda está na fonte. Sei que vocês já ouviram isso nalgum lugar, não?!

3 — Tomar banhos na soda. Penso em ficar três dias consecutivos sem tomar um banho sequer. Recordar o meu cheiro ruim de suor, desse corpo domado em roupas. Preciso feder para me sentir diferente dos fantoches.

4 — Almoçar em pé com o cronômetro ligado. Aliado do tempo, viajarei sem relógios. Eu quero mais é comer com os olhos, sem pressa. Vou caçar o que fazer com minhas próprias palavras e — vitorioso — botar a cozer a minha presa e a minha prosa com as batatas.

5 — Bater o ponto com uma porrada. Não necessariamente nesta ordem, farei mais ou menos assim (com a mesma languidez de um pendão de trigo entregue ao vento): vou rachar lenha pela manhã; morder anzóis à tarde; introduzir, à noite, o Programa Sangue Zero ao apetite voraz de uma legião de pernilongos. A isso eu chamo crescimento interno sustentável.

6 — Pescar lambaris com redes sociais. “What’s up, man?!”, perguntaria — inconformado — o peixe, meu mais novo aliado. Então, vou me desconectar e cair n’água para, enfim, fazer parte do grande aquário."

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