Minha professora de inglês

Crianças palestinas olham avião israelense em Beit Lahia, na Faixa de Gaza, em 4 de agosto. Qual o impacto do bombardeio na vida de uma criança?
"Ela explicou que um bombardeio marca qualquer pessoa e deixa marcas profundas em uma criança

Menalton Braff, CartaCapital 

Não, não vou falar de Gaza e do atual conflito judaico-palestino. Por mais que tentasse a neutralidade, sairia arranhado pelos dois lados, como sempre acontece. Uns me acusariam de haver defendido excessivamente e o lado contrário me acusaria por ter defendido insuficientemente. Ou seja, de qualquer forma meu já minguado prestígio junto ao respeitável público leitor tenderia para o zero. Na verdade, entretanto, nem é por causa de meu já minguado prestígio que evito abordar o assunto. Minha razão está no passado, um passado remoto e que a memória (este arquivo perene) não me deixa apagar de minha adolescência.

No meu tempo do Ginásio (era assim que se chamava o Ensino Fundamental: dá pra perceber a enorme diferença? Se é fundamental ou não, não sei, mas que o nome cria uns ares de algo definitivo, ah, isso nem se discute), pois naquele tempo, tive uma professora que por algumas idiossincrasias é dessas pessoas que não se consegue esquecer.

A professora Hildegard estava no Brasil havia apenas alguns anos. Ah, sim, e usávamos como título apelativo sua profissão. Lembro bem de me haver escandalizado quando, num ano, estudei no Paraná. Meus colegas chamavam nossas professoras de “dona”. Eu achava aquilo um desrespeito. Dona é a vizinha, é a mulher que encontramos no supermercado. Aquela mulher que rege uma classe, pensava eu, só pode ser chamada de “professora”.
Pobre de mim que andava tão preso a preconceitos semânticos.

Pois a professora Hildegard, toda vez que ouvíamos o ronco de um avião, parava, cruzava os dedos e ficava olhando o chão. Em silêncio. Às vezes descobríamos lágrimas em seu rosto. Nem sempre.

Um de nossos colegas de classe, que invejávamos com ferocidade por ter sido íntimo da família da professora Hildegard (como ela era solteira e jovem, não faltou que levantasse suspeitas a respeito daquela intimidade), revelou-nos, a nós, meninos assombrados, que nossa professora vivia na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial.

Convidada a nos acompanhar numa excursão, todos nós nos aproximamos daquela cabeleira loira, como se fosse uma colega da gente. Em excursão, algumas barreiras são destruídas, não é mesmo? Instamos com ela para que nos contasse alguma coisa da guerra. A Hildegard ficou muito séria, fez silêncio por alguns segundos, então, com seu leve sotaque disse que as marcas de um bombardeio marcam qualquer pessoa, mas principalmente deixam marcas profundas em uma criança, que depois dessa experiência nunca poderá se livrar do terror por que passou. São marcas que acompanharão uma pessoa até a última viagem.

Ficamos todos com muita vontade de chorar."

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