Poesia não enche barriga


Eberth Vêncio, Revista Bula

“Uma mulher que palita os dentes num restaurante não possui a menor credibilidade, muito menos merece um soneto” — pensou cheio de inconformismo, enquanto derramava café expresso no túnel esofágico. Chamou o gerente, reclamou do preço da chuleta, do atendimento do garçom, do calor que fazia ali dentro, da morena que arrancara nacos de carne presos entre os molares, do intestino solto do recepcionista, de qualquer coisa que justificasse o não pagamento da gorjeta pelos serviços prestados.

Não gostava de pagar gorjetas e ponto. Seguindo a tradição de muquirana, pagou a conta sem os 10% e pegou a rua descendo. Todos ficaram torcendo para que a avenida desse no inferno, e que aquele tipo de cliente nunca mais pisasse novamente no estabelecimento. “Nosso ódio será sua herança”— alguém brincou a rodopiar uma peixeira no ar como se fosse um índio atirador de facas.

Mal ganhou a calçada, o mão-de-vaca assediou uma moça ao dizer “Você é mais bonita ao vivo do que nos meus sonhos”. Quando a transeunte desconhecida ouviu o galanteio, jurou que fosse Camões (já tinha lido algo assim numa revista de fofocas, pois tinha verdadeira ojeriza aos livros).

Concluiu: “Pronto, achei o cara”. O relacionamento, entretanto, durou quase nada, bem menos que as tais 9 e ½ Semanas de Amor a que ela assistira na tela do cinema ao lado de um outro pretendente menos empolado. Querer todo mundo quer, mas, o fato é que é mais fácil enfiar um camelo no buraco de uma agulha, entrar no Reino dos Céus e receber do governo a devolução do dinheiro pago em impostos, do que alguém encontrar a sua cara metade.

Parábolas à parte, o fato é que, certo dia, durante um surto, o sujeito decidira viver a vida como se fosse um poeta. Então, tratou de vender todo o ínfimo patrimônio material que possuía (uma TV de tubo 14 polegadas, uma cama de campanha, uma magrela com pneus carecas, e quarentas discos de vinil em bom estado de conservação) para tocar uma existência mais franciscana.

Nunca ouvira falar de um renomado poeta que fosse rico. Gênios da literatura geralmente terminam os seus dias ensandecidos, corroídos pela sífilis, pela tuberculose, pelo vício da bebedeira ou pela péssima gestão financeira dos próprios negócios. Ora, quem vive no mundo da lua não precisa de casa.

Portanto, aplicou a grana no banco e foi morar de favor na casa dos outros.
Vocês sabem, quase todo mundo se julga um escritor supimpa, um poeta de primeira grandeza, uma criatura diferenciada e incrível com padrão intelectual acima da média. Não era diferente com aquele escriba de parcos recursos. Ele se considerava um incompreendido, a última rima rara da sopa de letrinhas. Aliás, como todo escritor medíocre que se preze, além de vaidoso, ele se achava injustiçado, vivia a declamar seus versos para as baratas das sarjetas, e a reclamar com os colegas de boteco que aqueles velhinhos da ABL não passavam de uma corja de apaniguados decadentes, cujas obras literárias valiam menos que os orgasmos de uma puta.

Eu sei que a analogia é deselegante e que uso do vernáculo chulo talvez fosse dispensável aqui, porém, não será preciso, caros leitores, que vocês abandonem os prostíbulos, muito menos a leitura dessa história, pelo amor de Deus, isso não. Ocorre que eu devo me ater à descrição detalhada do perfil deste protagonista da forma mais fidedigna possível, tal e qual foi a mim incumbido pela voz, aquela voz misteriosa que reverbera nos miolos da gente, e que os especialistas chamam de “inspiração” (outros especialistas — aliás, uns excelentes médicos especialistas — denominam simplesmente de “alucinação”).

Comigo também acontece. Muitas vezes, estou a digitar o teclado do computador, absolutamente compenetrado (posso até dizer que seria possível que alguém me penetrasse sem que eu o percebesse), quando, de repente, começo a escutar vozes, quase todas intimando “Apague a luz, seu traste! Eu quero dormir!”. São segredos da criação difíceis de explicar em poucas linhas. Então, vou sair para me enforcar com elas e já volto.

Não havia nada de errado no fato daquele indivíduo levar a vida na flauta, e subsistir com a poesia, custasse o que custasse. Quisera eu tivesse a mesma coragem. Acontece que o sujeito exagerava na dose de loucura, querendo resolver tudo com o recurso da lira, até mesmo ao trapacear. Tinha uma memória invejável, era um declamador charmoso, carismático. Mas, ao desperdiçar Drummond, Bandeira e Manoel de Barros para ludibriar as pessoas cometia um ato inconcebível, certamente, um sacrilégio. Pior ainda, quando garimpava as raridades literárias de autores renomados, a fim de retalhá-las, subtraí-las, enxertá-las de maneira capciosa e desonesta nos seus poemas monstrengos. Entre os seus pares era ridicularizado com a alcunha de “O Frankenstein da Lira”.

Portanto, apesar de querido pelos insetos de exoesqueleto, pelos bebuns e pelas profissionais do sexo, das quais sempre auferia descontos nos cachês, por conta do seu estranho fetiche em sugar-lhes os artelhos ao ponto de vazar sangue pelos cantos das unhas, ao mesmo tempo em que declamava poemas de Cecília Meireles como de sua autoria, o sujeito construíra péssima reputação entre os colegas letrados, tornando-se uma figurinha carimbada, alguém a ser evitado a todo custo nos eventos culturais da cidade.

Aludindo a Cecília, poder-se-ia afirmar que ele não era alegre, nem era triste, nem poeta. Na melhor das hipóteses, um verso refugado do “Poema Sujo” pelas mãos do próprio Ferreira Gullar."

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