Carta aberta aos canalhas


Eberth Vêncio, Revista Bula

"Aquela história de se julgarem a cereja do bolo, a última Coca-Cola do deserto, a bala de prata do tambor, e coisa e tal, tudo isso é balela. Não subestimem tanto assim o restante do planeta. Podem acreditar: quando revirarem as suas tripas durante uma autópsia — enquanto comentam os peitos novos da papiloscopista ou os resultados da última rodada da Champions League de futebol — não vai dar pra saber que seres humanos incríveis vocês eram, se amavam demais, se odiavam de menos, se tratavam a solidão da maneira mais delicada possível. Porque estar só pode ser também uma escolha, uma espiadela esperançosa através da escotilha de um barco que parece vazar água por todos os lados. Pior de tudo: há matilhas demais a remarem contra.

Da mesma forma, imbuídos de uma fome cega e imediatista — que nada preserva senão a biografia e os ossos, que não respeita pedigrees, epitélios, orifícios, ócios e ofícios — as larvas e os vermes não distinguirão dentre os sabores da carne ou os dissabores humanos. A gula pelo corpo supera qualquer expectativa de vida após a morte. Nesse caso em particular, vive-se, come-se aqui e agora, sem sonhar com reconciliações no paraíso, com o recall dos espíritos. Aliás, a não ser que alguém acenda um isqueiro, que um peixe nos engula, ou que o pescador Jonas faça-nos companhia nas vísceras de uma baleia, seremos todos devorados — mais ou menos a mesma velocidade — pelas irrepreensíveis mandíbulas subterrâneas.

E por falar em Terra, convém frisar que vocês não são o sol. Absolutamente. Por mais que insistam, o mundo não gira ao seu redor, mas em volta do astro rei e do próprio eixo que — pasmem! — é tão imaginário quanto a relevância humanitária que vocês — os canalhas — julgam possuir. Saiam da escuridão, bestas! Andarem por aí a arrotar que a translação é um movimento particular do planeta ao redor dos seus queixos seria o auge da prepotência, a arrogância a parir monstrengos nos calabouços da mente.

Aliás, vocês que mentem em prol da miséria, vocês que se valem da maledicência e da calúnia chafurdando as mais esmeradas mentiras — que são verdades capengas fabricadas nos famigerados laboratórios de alquimia que latem dentro das suas cacholas — são seres humanos ardilosos, as companhias ideais para as hienas durante banquetes fedorentos nas savanas do viver.
Ninguém mais escreve cartas? Não é bem assim, néscios. Saibam: vou fode-los com as palavras, os únicos canos fumegantes dos quais disponho nessa seara.

Aceitem: nem eu, nem as suas mães, nem os loucos da esquina confiam mais em vocês. Suas vidas são relógios de ponto pendurados nas paredes, aos quais vocês obedecem com a fé de quem cumpre religiosamente o horário sem se darem conta que o tempo passa. Suas vidas são os mexericos gravíssimos compartilhados aos pés de ouvido, são as cartas anônimas endereçadas aos jornais, as denúncias vazias cheias de veneno, as palavras difamatórias escritas nos muros à surdina, os teclados invisíveis de um computador, as telas de um smartphone de onde calúnias pestilentas escorrem feito o bubão de um mundo artificial, sem pé nem cabeça, no qual o dano à honra de terceiros prolifera mais que água morro abaixo, que fogo morro acima, que mulher quando quer dar, que homem quando quer cometer uma injustiça. Aliás, isso ninguém segura: destruir é a sua praia.

Alguém muito mais sensato e equilibrado do que eu haverá de alertar que escrever sob o domínio da raiva é uma tremenda temeridade. Não se preocupe, caro. Pensando bem, esta carta odiosa será sem efeito. Os canalhas jamais leem. No máximo, divertem-se com a leitura de rótulos de cerveja, extratos bancários escandalosos, sites de fofocas, horóscopos e as notas da coluna social. Depois ainda dizem que o antissocial sou eu."

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