Não sou essa Coca-Cola toda que vocês estão pensando


Eberth Vêncio, Revista Bula

"Pode soar falso. Pode parecer frescura. Pode ser que eu seja mesmo um fofo. Na verdade, eu confesso que tenho muita dificuldade para lidar com os elogios. Eu simplesmente me embanano todo, perco o rebolado. Vocês supõem saber quem eu sou. Mas, vocês não me conhecem.

Portanto, é chegada a hora de entenderem um pouco mais a meu respeito, se é isso lhes interessa mais do que uma cólica renal no meio de um feriado prolongado. Vou ser curto e grosso. Vou dizer tudo o que sei de mim. Daquilo que eu não sei, voaremos juntos, burros feitos uma porta. Pra início de conversa: não sou essa Coca-Cola toda que vocês estão pensando.


Eu pareço culto. Eu não sou tão culto assim. Eu não resistiria a meia hora de exumação dos clássicos da literatura com os imortais mais vaidosos de uma academia de sopa de letrinhas. Pior que tudo, a memória trai-me a todo instante. Não me lembro dos nomes dos livros, dos autores consagrados, dos protagonistas marcantes, das gororobas que comi hoje no almoço, dessa mulher deitada ao meu lado. Eu juro, meu amor: não é nada disso que você está pensando. Percebem? O meu caso é ainda mais grave que a queda do trema.

Eu pareço um bom moço. O meu português não é ruim. Essa vocação antiga para ser o ombro amigo de alguém ainda vai me quebrar o pescoço. Nunca tive um centímetro da pele tatuado num cais de porto. Portanto, sou uma criatura mais sem graça que o por do sol visto atrás das grades. São coisas que não somam. Quando escrevo, eu me esparramo aos cacos. Eu não sou tão bom assim quanto vocês imaginam, nem mesmo quando estou dormindo em pé nos cascos.

Chega de palhaçada. Persigo uma nomenclatura mais plausível dentro da escala animal. Sabe, apesar da cara de paisagem, da baba escorrida sobre a fronha, dos espasmos nos supercílios, eu sonho certos sonhos descabidos os quais não confessaria nem mesmo a um ex-padre, ainda que ele pagasse a próxima streapper.

Estão meio confusos com toda essa prolixa autoanálise? Não me admira. Pro lixo com ela! Vão dar um rolezinho no shopping, gastar o seu dinheiro, apaixonarem-se pelo manequim imutável da vitrine. Uau, isso seria trágico! Já pensaram? Não vou ficar me gabando por ser estranho. Logo, tentarei ser um pouco menos esquisito, como diz minha mulher quando está com raiva de mim. Eu não a culpo. Todos sentem raiva de alguém nalgum momento.

Eu pareço um homem de meia idade bastante confiável. Mas não sou capaz de manter as aparências por mais de duas confraternizações familiares. Mesmo sem propósito, eu costumo sabotar bodas de prata, tumultuar batizados. Sou craque em fazer as mulheres chorarem. Olha, na boa: não tem Lei Maria da Penha que me impeça de dizer certas verdades durante um regabofe.

Eu pareço um cidadão ilibado. Mas, não sou mais íntegro que o mais relapso dos cães. Confesso que adoro pisar na grama, conversar com o motorista, cuspir na palma da mão antes de fazer amor, e sonhar alto em recintos fechados. Eu quero me abrir. Por favor, não riam. Não está sendo nada fácil escrever essas linhas a meu respeito. Eu não sou misse. Não sou pop-star. Não vou dar uma entrevista para a Revista Piauí. Não preciso mandar que um puxa-saco vá até a esquina comprar um punhado de drogas, como se fosse ração para o shnauzer aqui. Eu sou careta, chapas. Eu não mereço o anonimato, mas também não quero a vaga da moça da Bala Chita. Não sou o mentecapto que se declara perdidamente apaixonado por uma árvore, embora — nesse quesito, vocês até que acertaram — eu amo a natureza.

Na maior parte do tempo, eu pareço muito gentil. Um gentleman, é o que dizem. Eu realmente lamento ter que tossir enquanto costuro a sua coronária, mas, eu engrosso o coro daqueles que perderam a fé no ser humano. Taí uma coisa que vocês certamente já tinham notados nos meus textos.

Alto lá! Não arredem os olhos! Puxem de novo a cadeira. Sentem a pua, se for o caso. Mas, por favor, permaneçam comigo. Prometo que já vou terminar. A pior coisa para um escritor em exercício é ser abandonado pelos leitores ali pelo quinto parágrafo. É mais deprimente que masturbar no Natal. Esclarecendo: eu não quis parecer inteligente; Natal não é uma pessoa, mas uma data comemorativa universal.

Saibam: eu pertenço àquela matilha silente e afásica que acredita que Deus entrou pelo cano ao criar o mundo em sete dias, ao invés de gozar de um pacote completo de uma semana em Andrômeda, pelo sistema “All-Inclusive” (o cardápio não inclui seres humanos, é claro).

Pode parecer um descalabro, uma espécie de descontrole emocional e, nisso, vocês até têm razão. Não são muitos os leitores que compreendem os meus tremores de terra. Por fim, eis-me aqui: eu sou um vulcão adormecido que mal pode esperar para cuspir o seu turbilhão de lavas. Mágoa? Não. Mágoa, não. Mágoa eu me recuso a carregar. Bem ao contrário, eu descarrego toda mágoa dos ombros para deixar a caminhada um pouco mais leve."

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