Que se dane. Vou ser feliz na chuva


Eberth Vêncio, Revista Bula

"Ninguém gosta de sofrer, por suposto. Estava tão afetado nos últimos tempos, que se sentia um náufrago com hidrofobia e se dispunha a acreditar em qualquer coisa que lhe apresentassem como a redenção. E por falar em Redenção, uma índia emigrante do Pará que fazia faxinas na casa da vizinha ao lado foi logo oferecendo a ele — o desacorçoado — uma garrafada de ervas que consistia numa mistura exótica de extrato de ayahuasca-diet, caldo de chavasca e pinga de passarinho, tudo isso envasado numa garrafa de Velho Barreiro. A jovem curandeira sem registro no CRM garantia que era beber aquilo, virar os olhinhos, e usufruir do tão esperado encontro com o eu interior — o qual se situava, àquela altura da vida, estancado nalgum ponto entre o eu exterior e o subconsciente.

Consciente de que tomar aquilo seria uma verdadeira latada, ele atendeu ao convite da vizinha da casa da frente — as mulheres, sempre solícitas e generosas — a fim de que fossem visitar em procissão a Imagem da Santa Projetada na Janela. A caminho de um milagre, o taxista falante que os conduzia — há inúmeros por aí a testarem as enxaquecas da gente — recomendou que ele desse uma guinada na vida ao conhecer as ruínas de Machu Picchu, pois aquela tinha sido a melhor viagem que tinha feito, desde que abandonara o vício em internet e punheta. Apesar de toda aquela ladainha a respeito dos incas, de como eles fizeram para carregar toneladas de pedras até cume da montanha, finalmente chegaram ao destino: um antigo prostíbulo abandonado pelas autoridades e pais de família.

Havia uma multidão silente e organizada, uma fila vertiginosa que dobrava a esquina. De acordo com os relatos da vizinha da casa da frente, a Imagem da Santa Projetada na Janela já tinha operado milagres incontáveis, ao ponto de fazer um aleijado, não apenas andar, mas executar — vendado — embaixadinhas com os olhos de um boi. Também gerava espécie entre os peregrinos aquela história do corrupto senador da República que, não bastasse devolver a grana surrupiada ao erário, retirou do escapulário notas de cem pilas e foi socando na boca dos eleitores como se fosse alfafa.

Na escola, nunca tinha sido bom em ótica. Quando tentou explicar pra multidão dolente que a Imagem da Santa Projetada na Janela — a qual só aparecia uma vez ao dia, exatamente durante o ocaso — nada mais era senão um fenômeno luminoso ordinário, um reles efeito dos derradeiros raios solares a incidirem tangencialmente sobre as minúsculas partículas de areia contidas no vidro da janela do puteiro, cujo efeito reflexivo proporcionava aos menos escolados na matéria a impressão de que havia ali o semblante da Nossa Senhora, a turba reagiu com tanta raiva que nem mesmo o taxista verborreico se dispôs a levá-lo de volta para casa. E quanto à vizinha da casa da frente? Desistiu do pupilo, mas ainda teve tempo de testemunhar um goleiro frangueiro operando verdadeiros milagres em praça pública.

Andou vinte quarteirões, desenganado pelos médiuns. Entrou num bar para tomar um drinque e, quem sabe, uma providência na vida. O ambiente era tosco, cheirava a esmegma. Estava quietinho no seu canto, mas foi interpelado por um ex-pároco efeminado que jogava sinuca, ao qual acabou contando a sua história, relatando toda a sofrência dos últimos 150 anos.

Enquanto o ex-enviado-do-senhor — agora, (en)viado assumido — encaçapava a bola sete no buraco de um médico viciado em crack, insistiu que apostassem a próxima partida, valendo-se das hóstias remanescentes do período em que ainda prestava relevantes serviços ao Vaticano. Usariam aqueles sacrossantos artefatos da igreja católica como se fossem fichas de cassino, a vinte pilas cada uma. A proposta do vigário vigarista foi muito criticada por outro sujeito, um velhote cego-de-rancor que lia nas entrelinhas daquele duelo um bocado de profanação, sacrilégio, heresia e falta do que fazer. Irado com a intromissão, o ex-pedófilo de batina arremessou o taco sobre a mesa, e esbravejou didaticamente que as hóstias não passavam de lâminas prensadas de farinha de trigo que, por sinal, eram insossas, especialmente aos que não criam mais em porra nenhuma.

O anti-herói considerou aquela resenha pesada demais. Então, vazou do estabelecimento mais rápido que o rato gordo que saltava do balcão. Sentia-se tão taciturno que parecia mais viável, ao invés de voltar andando para casa, escorrer pela sarjeta. Pensou na buceta, na rima indecente que o esperava em casa, mas, com aquele humor depressivo, não sentia a menor vontade de comer lasanha, muito menos, traçar a companheira.

Do nada, como se voltasse no tempo, parecia escutar de novo as palavras do falecido pai — a quem matara em pensamento — que profetizou, aos berros, embriagado com aguarrás, que ele, com toda certeza, não daria nada que prestasse nessa vida. À época, ele tinha cinco anos de idade, portanto, só restava chorar pelos cantos daquele antro chamado lar.

Lembrou do trevo de quatro folhas que carregava dentro da carteira, e que fora presente da mãe, poucos dias antes dela se enforcar com uma trança de queijo mussarela no travamento do telhado da cozinha. Pra ele, a vida era um osso. Portanto, fazia um esforço sobre-humano para se sentir menos cão.

Pensou nos anjinhos da Basílica da Santa Paciência, que choravam lágrimas de sangue do tipo AB negativo, o mais raro de todos, em matéria de hemorragias e fenômenos sobrenaturais. Piscou, esfregou os olhos, fez de tudo para enxergar o rosto do Cristo na porta de jacarandá do velho armário de roupas da vovó. “Está lá. Você não vê, meu filho?”, ela insistia movida de muita fé e impaciência com o neto ateu. Cogitou matar a própria sede tomando água benta.

De tanto esperar pela luz, acabou surpreendido pela chuva, que eram as decantadas águas de março a fecharem, não só o verão, mas essa história confusa. Tinha uns moleques jogando bola na rua. Pode parecer estranho: sentiu saudade da meninice. Foi invadido por uma paz esquisita que há tempos não o estarrecia. “Que se dane. Vou ser feliz na chuva…”. Então, arrancou o mocassim. Misturado à meninada, passou por um, passou por dois, fez uma bela jogada, e só não entrou no gol com bola e tudo porque as traves eram feitas de chinelos, tijolo e lata."

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