Como interpretar sonhos sem cair no ridículo


Eberth Vêncio, Revista Bula

"Enquanto eu dormia, minh’alma saiu pra dar um rolezinho e nunca mais voltou.
Papai não gostou nada da brincadeira. Sou espirituoso. Ele é espiritualista. Às vezes me chama de espírito-de-porco. Ele cria e crê piamente que as almas dão sim os seus passeios enquanto estamos dormindo. Ninguém enxerga, mas lá estão elas, a rosetar pelo limbo. Por que motivo elas não permanecem ali, nem eu, nem ele saberíamos dizer. Eu, se fosse uma alma com hábitos noturnos, pessoalmente, ainda que pequena, ainda que valesse a pena, não voltaria para o meu corpo nem às custas de um despertador gritando na escrivaninha.

Enquanto a multidão passava bradando a reivindicar que o presidente do país pegasse descendo, eu e papai derrubávamos, não o governo eleito pela maioria do povo, mas sim, uma gelada matilha de garrafas de cerveja e uma sacola recheada de medicamentos — meu velho tem quase oitenta, e muita vontade de voltar aos trinta. A pedido dele e do psiquiatra — “Por favor, evite as contrariedades” — adentramos na irrelevante seara da interpretação dos sonhos, o tema mais fútil que encontramos naquela ensolarada tarde de domingo.

— Todo sonho esconde uma verdade…, ele garantiu, sorrindo de orelha a orelha, divulgando migalhas de remédio e de asinha-de-frango entre os dentes.
Não podia mentir para ele, dizer que os sonhos nada mais eram do que uma válvula de escape para que as mentes não enlouquecessem, uma espécie de câmara de gás para dizimar os pensamentos cotidianos, um recomendável back-up neuronal para se começar tudo de novo na manhã de um novo dia, uma privada para sinapses.

Partindo do falso pressuposto que eu também cria naquilo — que os sonhos eram premonitórios, mensagens disfarçadas nas entrelinhas — bocejei e passamos juntos a listar os scripts oníricos mais comuns que as pessoas reclamam de sonhar, detalhando as nossas respectivas interpretações, num edificante e divertido exercício etílico baseado na evidência de que estávamos deveras ociosos.

Por favor, leitores, anotem os sonhos que seguem abaixo a fim de evitá-los a todo custo.

Sonho número 1 — Você está caindo num precipício
Fome. Simplesmente, isso: fome. Evite dormir com o estômago vazio. Coma alguma coisa, nem que seja com os olhos. Devorar livros ajuda sobremaneira. De tanto sonharem com sopas, os moradores de rua das grandes cidades brasileiras acostumaram-se com as quedas diárias em precipícios. Tanto assim que preferem encher a cara com aguarrás ou fumar as pedras do caminho, ao invés de tirarem um cochilo. Enquanto isso, o cidadão de bem ronca na cama, mais confortável que uma marmota.

Sonho número 2 — Você esquece todo o conteúdo da matéria exatamente no dia da prova
Esse sonho pueril, juvenil, só acomete os estudantes devotados. Denota certo grau de insegurança. Com o que sonham os relapsos, os desinteressados em aprender? Sei lá. Provavelmente com a hora do recreio ou em comprar smartphones novos.

Sonho número 3 — De repente, você se depara nu no meio de uma sala de aula lotada de gente
Timidez. Insegurança. Pênis pequeno. Feiura. Falta de coisa melhor pra sonhar.

Sonho número 4 — Você se apaixona por alguém que nunca viu na vida
Provavelmente, durante a vigília do cotidiano, você já viu ou já cruzou com a pessoa pela qual você se apaixonou dormindo. O problema é que você não se recorda onde, quando e por que. Esse é um dos mais frustrantes sonhos que um ser humano pode sonhar, principalmente quando se está solteiro. O sonhador desperta, cerra os olhos com esperança, força, implora o comparecimento imediato do sonho, mas ele simplesmente não retorna, e o ser amado escapa, evapora com os primeiros raios de sol.

Sonho número 5 — Você esparrama mel no corpo escultural de uma mulher nua, mas acaba arpoado no peito, trespassado pelo ferrão de um zangão gigante que voa e o carrega pelo céu
Papai olhou-me como se eu fora possuído pelo demônio de um velho senador da república. Contou-me que, apesar da sua coleção de doenças e de delírios em retroceder no tempo, jamais sonhara tamanha sandice.
Então — bom pai que era e é — recomendou que eu abrisse outra garrafa de cerveja e passássemos logo ao próximo sonho, pois a turba de manifestantes ufanistas ganhara corpo, e já era possível ouvir os apupos exigindo — democracia às favas — a volta imediata de qualquer desgoverno autoritário. O que se ouvia ali nas ruas, na calorenta tarde de domingo, não passava de apologia aos pesadelos. Sonhadores de verdade havia bem poucos no meio da multidão. De tanto medo, nem dormi direito naquela noite."

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