Breve história de um amor que não dá pé


Eberth Vêncio, Revista Bula 

"Estava vadiando pelo Parque Ibirapuera e encontrei esta estranha carta enroscada numa hera. Pensei que fosse só mais uma história de amor, e era. Leiam comigo. Abram-se aspas:

Água até o pescoço. Isso é o que há. Não perca mais tempo em busca do amor. O amor é só mais um detalhe. Escute — veja se dorme com mais essa, baby — , o que eu tenho para lhe oferecer é um enorme vazio. Aqui dentro desse peito de lata daria pra reverberar, pra colecionar constelações de grandes explosões tão longevas quanto um fósforo aceso durante uma ventania. Se ligue nesta dica quente e explosiva: o risco do ranço não vale a rasgado da aventura.

Desventurados é o que somos. Sim. Recebi e preguei na parede da memória os poemas que você rabiscou e me enviou — suponho que os escrevera nua, louca, embriagada de vinho — na última sexta-feira da paixão, quando juraste pelas chagas de Cristo — mais apaixonada do que Madalena no cio — que tudo valia a pena quando a alma não era pequena. Grandes coisas. Achei-os melosos demais, cuidadosos demais, efetivos de menos. Espero, sinceramente, pelo bem do seu fígado, que sejam os últimos. Mude de assunto, criatura. Experimente a prosa. Experimente amar outra pessoa. Esquece que um dia já leu Fernando Pessoa.

Insistir no afeto é uma das coisas mais deploráveis de que é capaz um homem e uma mulher. Aliás, ao apelar para a autocomiseração e o melodrama, o indivíduo canibaliza-se, fica assemelhado ao cão que sorri abanando o próprio rabo para ser retribuído com comida e atenção. Eu sei que você quer ser comida, meu bem — aliás, seu corpo parece mesmo o decantado pão nosso de cada dia — mas, preste atenção numa coisa: eu gosto de você, mas isso é muito pouco para que eu faça as malas e pule dentro. Esse romance vai durar menos do que o voo de uma galinha gorda acometida de artrose nas asas. Azar o meu: você surgiu na hora errada, que nem a cólica que hora azucrina-me os rins.

É preciso ser mais razoável? Ok. Sejamos razoáveis. Juntos. Nós dois. Os seres mais razoáveis deste desarrazoado planeta que ainda tolera a morte de pessoas por fome. Confira comigo: você tem 25; eu, 55. Você adora as baladas. Eu fico bolado em dividir aquele tipo de atmosfera festiva com tanta gente rasa e infame. Você se amarra em funk, em música eletrônica, no universo sertanejo-universitário. Eu, ao contrário, sou escolado em rock and roll. Aliás, não me lembro se eu já lhe disse, sou discípulo de Elvis, aquele que foi enterrado, mas, ainda não morreu, se é que me entende. Você sonha em ter filhos. Meus filhos sonham em me tocar de casa. Você idealiza um mundo melhor. Eu não faço ideia do que comer na janta e de como evaporar, sumir dessa indecente bolota azul sem comer grama pela raiz.

Quer saber? Pode até parecer depreciativo — e é — , uma heresia da minha parte — pois, sim — : se o nosso relacionamento desse certo, seria mais um daqueles acasos da natureza; talvez, o mais impensável equívoco desde Deus estalou os dedinhos para criar polêmicas em bares e igrejas. Ateu filho-da-mãe é pouco pra mim, eu reconheço. Sou aquele sujeito apaixonante — e cínico — que atira podres na lua.

E por falar nisso, é tarde da noite. Preciso terminar esta carta. “Puta que pariu! Quem ainda escreve cartas?”, você haverá de perguntar, certo? Temos mais essa diferençazinha. Você deve estar aí maquinando minhas palavras, buscando alguma lógica nelas, enquanto enche a cara com aquele carménère chileno de que falei, o preferido de Pablo Neruda.

Cuide da sua digestão: não me queira mal acima da média. Eu pedi pra você parar de beber, parar de escrever, parar de pensar mim. Pelo bem maior dos fígados que amam, pare agora. Considere o seguinte: nós somos duas criaturas tão diferentes, mas tão diferentes, que a coisa toda poderia até dar certo. Isso não lhe parece um baita paradoxo? Ocorre que esse mundo cão, que tantas atrocidades permite, haverá de testemunhar a mais uma delas: a morte de um amor que não dá pé."

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