O amor é contagioso, mas não se pega no cuspe




por Eberth Vêncio, revista Bula -

Confessa o indivíduo abaixo assinado que o mesmo tem caminhado pelejas de descompasso, fora de sintonia, orbitando noutras atmosferas difíceis de explicar, no que tange aos mais recentes acontecimentos que assolam o país e o planeta. As agruras do mundo não lhe interessam mais. Trocando em miúdos, com a devida escusa para usar um português coloquial: o homem chutou o pau da barraca.

Apesar de ter se casado, de ter concebido filhos, de possuir carteira de trabalho assinada e um número de CPF gravado nos registros oficiais do governo, ele assume e escreve de próprio punho, sem convencimento de tortura, que se sente desgovernado, que anda um tanto alheio e desinteressado às notícias-quentes-de-última-hora que abalam o mercado financeiro e o cenário político atual. Há um aparente excesso de passado a ocupar os seus miolos, o que pode estar lhe afetando a saúde mental. Por medidas econômicas, por precaução das instâncias sanitárias, ele será submetido ao crivo de uma junta médica competente.

Admite o depoente que sua única contribuição para o insucesso das operações da inteligência estatal foi cometer a tolice de brincar na chuva com os moleques-de-rua, como se criança ainda fosse, perdido nos labirintos de si mesmo, e que se sente deveras ensimesmado ao recordar do antigo aroma de grama molhada e as broncas que recebia da senhora sua mãe, uma progenitora aflita que sofria por antecedência temendo que o rebento contraísse gripe, tosse ou pneumonia. Conforme as cópias de documentos comprobatórios que seguem anexo, consta que, anos mais tarde, o filhinho-da-mamãe acabou se apaixonando por uma contadora-de-histórias e contraindo matrimônio. Ao que parece, o amor sempre foi um micróbio contagioso, embora não se transmita através da saliva.

Afirma o declarante em questão que apostou suas últimas fichas numa delação premiada acolhida numa noite quente, sob luz de lua cheia, numa praia paradisíaca, um foro mais do que privilegiado, diga-se de passagem, e acabou ganhando um beijo e carícias complementares, elementares, a que tem direito um homem sensível, um prêmio ofertado tão somente aos que abrem as taramelas do coração para confessar de peito aberto: Hoje, eu te amo. Contudo, ele acrescenta enternecido, que as ondas de amor do mar lamberam os versos escritos com o próprio dedo nas páginas de areia do lugar, apagando as provas cabais de um crime combinado: ele fora fisgado em vida, estava mortinho de amor, mesmo assim e por conta disso, respirava livre, leve e solto, sem a ajuda de aparelhos.

Declara o elemento, para os fins que se fizerem necessários, que, ao contrário do que se apregoa, a vida não começa aos 40, outrossim, principia quando a gente quiser que ela principie. Nessa altura do depoimento, ele lucubra: Somos livres para ir e vir, para amar e desamar, para levar uma vida inteira na flauta ou à caça do chamado futuro promissor. Ele completa o prolixo raciocínio, com ar de professor, reiterando que o passado o absorve e o presente lhe embrulha o estômago. Anda enojado dos seres humanos, os seus pares cotidianos, como eu, tu, ele, nós, vós, eles. Mudam os pronomes, mas os pecados continuam os mesmos.

Assume o sujeito que o verbo quase sempre tem bons predicados e, sim, sem sombra de dúvida, foi ele quem pichou palavras de ordem, em prol do amor universal incondicional, num muro portentoso, à prova de pobreza e pena, levantado na fronteira dos Estados Unidos com o México. Para evitar admoestações xenofóbicas, a fim de prevenir que a sua carne latina fosse dilacerada pelas mandíbulas de cães-de-guarda-com-topete-loiro que latiam em fluente inglês, este suposto aloprado, que hora relata a sua história à justiça dos homens, que tem a petulância de se auto-intitular poeta-por-opção, cometeu tais deslizes-de-lira do lado mexicano do muro, chapado de tequila até o cerne, se virando para declamar poemas de Octavio Paz num portunhol sofrível que agradou em cheio “los miserables Hermanos” que o ouviam.

Registre-se, por fim, nesse inquérito confuso, fictício e nada sigiloso, que esse cidadão ardiloso, criatura agnóstica, infeliz e, obviamente, antissocial, pelo que se depreende e se conclui das investigações e dos fatos cabais ora expostos ao público leitor, fora flagrado com o recurso de grampos telefônicos, nos quais confessava às quatro paredes ter perdido tempo, o cartão de crédito, a crença em deus e na raça humana, uma confissão inaudita que deve soar como insanidade, truque ou blasfêmia aos ouvidos mais sensíveis.

Sem mais para o momento, assinam este depoimento a autoridade fiscalizatória vigente e um sujeito descrente acusado de fadiga, solidão e tédio.
Fotografia de David Uzochukwu, vencedora do EyeEm Awards.

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