Quando os corações viram lixo até as moscas se espantam


Por Eberth Vêncio, Revista Bula -

 
— Por que você quer matá-lo? — perguntou o pistoleiro enquanto sorvia outra dose de Cuspe. Apesar do blues-etílico-rascante que ressoava pela atmosfera do bar e dos falsetes das meretrizes eclodindo das suítes insalubres, dava pra ouvir o velho bourbon, uma das poucas coisas boas e legítimas que existiam no lugar, sendo despejado diretamente na lata de lavagens que era o estômago daquele paquiderme bípede.

— Porque ele é um lixo. Lixo! Lixo! Lixo! O sujeito não vale nada. Ele é uma escória ambulante, um zero à esquerda, ele merece morrer e quase ninguém vai sentir falta quando ele sumir — gritou o mandante, claramente exaltado, pegando fogo nos olhos, fazendo rescender um fedor desgraçado de ódio que afugentou a garçonete venezuelana, uma ex-professora universitária em Caracas, que limpava a mesa deles com um esmero descabido, incompatível àquele covil repleto de perdedores natos e de ratos bem sucedidos.

— Vai pagar quanto? — palitava os dentes com uma clavícula de frango.

— Que tal isso para começar? — arrancou do bolso um calhamaço com notas novinhas de 100 dupondius, nas quais vinha escrito, no rodapé, em letras negritadas, a frase “Em Deus a gente não confia”.

— Quanto dinheiro tem aqui, dom?

— 5 mil.

— 5 mil agora e 5 mil depois que eu pegar o sujeito?

— É isso aí, homem.

— Você odeia mesmo esse cara, não? — perguntou o sicário.

— Não é da sua conta.

— Não sei o que é que você tem, só sei que você provoca o demônio dentro de mim, meu naco-de-carne-estrangeira — disse o carniceiro à atendente, valendo-se de um portunhol insuportável, louco para encaçapar nela, de qualquer jeito, nem que fosse, de acordo com os seus selvagens parâmetros pessoais, da pior maneira, ou seja, com o pleno consentimento dela. O celerado se amarrava num estupro.

— Deixa a moça em paz, homem.

— Quando você quer que eu o pegue?

— Hoje. Daqui a pouco. Vamos aproveitar a queima de fogos.

— Matar um cara na noite de réveillon… Isso parece bem perverso.

— É perverso, mas, é humano.

— Qual é o plano, dom?

— É o seguinte, homem, preste atenção: eu conheço o alvo como ninguém. É gente da minha família. Sei que ele está jantando nesse instante com os filhos na Espetos de Coração, no bairro de Perdigotos. Suponho que você conheça o lugar? Fica aqui perto.

— Sei onde é. Como é que eu vou reconhecê-lo, dom? Preciso de uma foto.

— Não tem foto. Vou explicar. Vou descrever o perfil dele com tantas minúcias que não vai ter como você se confundir.

— Mui agradecido. Não vamos gastar munição com o desgraçado errado, certo? — riu, esboçando comida entre os dentes.

— O sujeito é branco, magro, careca, tem aparelho ortodôntico na boca, tem mais ou menos a minha altura, tem mais ou menos a minha idade e é conhecido pela alcunha de Colmeína, um apelido de infância.

— Então, vou matar o papai na frente dos filhinhos? Eu devia cobrar dobrado por causa disso, dom — gargalhou.

— Não vai ser assim, homem. Presta atenção. Você vai pegá-lo fora da churrascaria. O filho mais velho já dirige, tem carro próprio e vai se mandar com o irmão. Depois que os guris forem embora, o cara vai andar até o metrô.

Daí, você o segue e… Pá-pá-pá! Fim de linha pra ele. Entendeu?

— Entendi.

— Tem mais uma coisa. Eu sei qual é a roupa que ele está usando, pois, estive com ele há pouco: quepe preto do Che, calça vermelha e uma camiseta branca com aquele famoso logotipo dos Flambeed Monkeys plotado nas costas: a genitália em chamas de um babuíno.

— Quem são os Flambeed Monkeys?

— Não importa quem são os Flambeed Monkeys. Me escuta. Se liga na resenha pra você não pegar o cara errado: homem branco, 50 anos, calvo, cerca de um metro e noventa de altura, aço nos dentes, quepe do Che, calça vermelha, camiseta dos Monkeys. Vai sair com os filhos da churrascaria, despedir-se deles na calçada e caminhar sozinho até a estação de Perdigotos. Antes dele mergulhar no túnel, você aparece por trás, chama o cara pelo apelido: “Ei, Colmeína!”. Ele vai se virar e você descarrega o pente nele. Deu pra entender ou quer que eu desenhe?

— Como é que você sabe de tanta coisa assim, dom? — perguntou o matador.
— Já falei que o sujeito é um parente meu, homem. Estive com ele, na casa da mãe, agorinha mesmo, antes de vir pra cá.

— Sangue do seu sangue. Quem diria…

— Eu preciso de um pistoleiro, não de um padre. Aceita a droga do contrato ou não?

— Demorou.

— Então, se manda e não erra comigo.

— Meu serviço é garantido, dom. Não deixa pista. Não tem recall. É nhambu na capanga, pode contar. Quando é que eu pego a outra metade do pagamento?

— Hoje mesmo, depois da tocaia.

— Como assim? Não entendi?

— No bolso do morto, homem. Acabo de pagar uma dívida antiga que eu tinha com ele. Exatos 5 mil dupondius. Assim que ele tombar no passeio, procura nos bolsos. O dinheiro estará lá.

— Se não tiver grana no bolso dele, o que eu faço: mato você?

— Vai estar tudo ali, homem. Se não estiver, eu lhe pago amanhã, aqui na Scandal, mesmo horário, mesma mesa, mesma garçonete gringa. Fechado?

— Fechado. Que Deus nos ajude. Até amanhã.

— Deus está de recesso e não vai haver amanhã, homem. Pega o seu dinheiro no bolso do cara. Daí, ficamos quites.

— Foi divertido organizar um assassinato com você, dom. No primeiro dia útil do ano, faça o seguinte: doe sangue, se ainda tiver algum correndo na sua veia.

O pistoleiro gargalhou da própria piada infame e partiu. O mandante caminhou até o toalete e se trancou numa das cabines. Despiu-se. Abriu a mochila.

Revirou as coisas. As pedras e o cachimbo ainda estavam ali. Não ia fumar agora e botar tudo a perder. Retirou da sacola a calça vermelha, a camiseta dos Monkeys, o velho quepe do Che e ligou para o filho mais velho dizendo que podiam ir pedindo o jantar, pois, ele já estava de saída para o Espetos de Coração, onde, sem que os boys soubessem, jantariam juntos pela última vez.

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