Gente feliz não enche o saco

 

Por Eberth Vêncio, Revista Bula -

“Você não sabe com quem está falando”, ela esbravejou. Fiquei absolutamente exaurido com a sua presença, uma kriptonita bípede, uma espécie de chupa-cabra que sugara quase toda a minha energia. Ora, eu não estava ficando doido, absolutamente; eu sabia, sim, senhora, com certeza, com quem eu estava falando: eu falava com uma mulher desconhecida, de 60 anos de idade, rude e prepotente. Antes conversasse com as árvores. Sofreria menos desgostos.

Confesso que caí numa armadilha. Deliberadamente, ela era habituada, boa de briga. Gritamos. Digladiamos. Tripudiamos um com o outro, na mesma sintonia de raiva, eu suponho. De repente, o silêncio e ela se estatela no chão, devagarzinho, em câmera lenta, aos poucos, medindo bem a distância para não despencar de vez e se ferir; o simulacro de uma vertigem por ataque de nervos encenado para me testar ou para me assustar, não saberia dizer. Demônios! Eu tinha convicção que aquela cena era um truque, só não estava certo se chamava uma ambulância ou um camburão da polícia para levá-la dali.

Era um típico ataque histérico. Sentei-me, respirando ruidosamente como um animal acuado. Fiquei mirando aquela criatura desagradável, uma mulher madura, vivida, descompensada, uma estranha companhia jazendo no piso do escritório. Ela parecia ridícula. Se pudesse levitar sobre o cenário caótico, é líquido e certo que eu me enxergaria igualmente estrambólico. Tudo parecia teatral demais, surreal demais, um encontro inusitado com péssima sintonia afetiva.

Foi um embate por demais humano. Cada um por si e todo mundo na lama. Eu me sentia extenuado como um cavalo velho à beira de se aposentar das esporas. Poderia escoiceá-la na cara ou simplesmente carregar sobre o lombo, durante algum tempo, o peso lamentável de mais um encontro desafortunado com pessoas que murcham pimenteiras com os olhos. Preferi a segunda opção, afinal, eu já tivera ido longe demais naquele entrevero. A atmosfera ficara irrespirável, de repente. Sempre detestei gritar com pessoas.

Poderia ter sido diferente. Eu poderia ter engatilhado os lábios e disparado contra ela um sorriso. Talvez, desse certo e eu a desmontasse por completo com uma atitude amistosa, inusitada, já que ela entrara no ambiente aos berros. Talvez, a demovesse do projeto de atazanar o meu dia. Ainda era cedo. Eu tinha o dia inteiro para refletir sobre o imbróglio. Fora sempre assim nas raras vezes em que perdia a calma. Padecia de um sofrimento interior por causa disso.

Ela remexeu a carcaça. Suas pálpebras farsantes salteavam. A fronte feiosa enrugava-se, exibia sinais inequívocos de dissimulação e circo. Espumava pelos cantos da boca uma gosma invasora cuspida propositadamente. A criatura babava sobre o assoalho, aquele mísero e temporário pedaço de chão onde eu trabalhava para tirar sustento financeiro.

“Por favor, levante-se, senhora. Você precisa ir embora. Não me sinto muito bem agora. Por favor, levante-se, junte suas coisas e saia já daqui.”

Ajudei-a a se levantar. Ofereci a água do meu próprio copo. Precisava me livrar rápido da sua insustentável presença. Ela aceitou o recurso e sorveu todo o conteúdo com a sua boca murcha e malsã. Desculpou-se. Encarecidamente, desculpou-se. Disse que há tempos padecia dos nervos. Insistiu, martelou inúmeras vezes para que eu a perdoasse. Sim, senhora, eu a desculpava, contudo, era urgente que ela partisse o quanto antes. Não eram sequer dez da manhã e eu já me sentia esgotado, chupado até o bagaço. Ajeitou as madeixas com mãos antipáticas e trêmulas. Recobrou a pose, catou a bolsa e foi embora.

Teríamos atirado um no outro, caso andássemos armados, caso vivêssemos no tempo das diligências; dois completos estranhos duelando com palavras e se maltratando como velhos conhecidos.

Aquele encontro tinha sido uma infeliz dose de loucura. Sentia a boca seca. A carne tremia. Se tivesse disponível, tomaria uma dose dupla de Cuspe e ouviria “Live and let die”, de Paul McCartney, no volume máximo, como forma de acalanto. Minha droga é a música. Era preciso desacelerar o coração, discernir o que tinha sucedido, a fim de retomar mais um dia de trabalho com razoável paz interior.

Há um esforço conjunto, descomunal, para tornar a paisagem das grandes cidades mais aprazível aos olhos. Pela janela da sala, contemplava o jardim de inverno quando um passarinho, cujo nome desconheço por completo, pousou num dos galhos da pequena jabuticabeira carregada de frutos. Seu bico cortante e fino penetrou a casca, delicada, cirúrgica e certeiramente. Num curto instante, sugou toda a polpa, deixando o fruto murcho, deformado e vazio, como eu me sentia. Se fosse menos incrédulo, eu suporia que aquilo era uma espécie de sinal.

Mas, não. Não torno as coisas assim tão fáceis. O plumado visitante bateu asas e foi embora assombrar outros seres humanos com graça, sutileza e muita fome de simplicidade.

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