Quando eu crescer, volto aqui pra te dar um tiro ou uma rosa




Por Eberth Vêncio, Revista Bula -
 
Ninguém sabe nascendo. Nem assim. Ao que parece, não há um grande mistério em viver. A vida perpassa pela simplicidade. Tudo é causa e efeito. Se você me ensina a amar, eu vou amar. Se você me ensina a odiar, eu vou odiar. Simples assim. Criança aprende fácil. Um exemplo já basta. Neurônios são macaquinhos perfeitos. Se você puser uma rosa nas minhas mãos, eu vou prendê-la nos seus cabelos. Se você puser uma arma nelas, um dia, eu ainda meto uma bala em quem você ama e acabo preso, com uma tarja preta nos olhos, uma foto no jornal e as tristes iniciais do nome de um noviço no mundo do crime.

Criança não tem jeito. Criança diz cada coisa. Crianças repetem os adultos. Aliás, essas pequenas criaturas repetem aquela indisfarçável tristeza nos olhos quando tardam crescidas. Nossa infame condição humana é uma praga hereditária como o daltonismo. Tem gente que não enxerga a fragrância adocicada das cores, por mais que caminhe de nariz empinado em jardins floridos. Tem gente que saca uma pistola, mas, não saca uma só metáfora. Isso não é uma simples figura de linguagem. Isso é uma lástima. É dolorido quando a poesia fracassa e a paisagem que toma conta dos olhos acostuma-se em redundar cinza. Parece que é sempre ontem. Parece que é sempre nada. Parece que é sempre inverno, aquela sensação medonha de ar parado, de tempo parado. Parece que é sempre o frio óbvio, a solidão cortante e o inferno das lembranças ribombando dentro no oco profundo prestes a nos fazer dementes. Parece que é sempre um daqueles filmes do Ingmar Bergman passando pela retina, sem um fundo musical condizente com o drama da gente.

Muitas vezes, tudo que se precisa é um colo; um reles, macio e reconfortante colo no qual se aninhar para chocar os ovos do melodrama, para suportar a dor do nada saber. A ignorância fere o ego de quem busca o autoconhecimento. Se você me dá um beijo, eu lhe dou um beijo. Se você me dá um tiro, pode ser que eu salte o muro, sobreviva à sua mira, escape da sua ira e volte para lhe devolver o troco em balas. Deste fatídico dia em diante, é quase certo que você nunca mais beijará um outro alguém. Daí o mundo terá colecionado no seu inventário atroz mais uma daquelas incontáveis histórias tristes.

Pode ser que você me ensine a ler e, justamente por causa disso, eu consiga usufruir do inestimável prazer de transformar uma sopa de letrinhas em pensamentos comestíveis. A gente não quer só comida, tenho certeza que você já ouviu alguém cantando isso antes. Eu quero me comunicar. Eu quero ser ouvido. Eu quero ser instrumento de transformação social positiva, sem que esse fenômeno pareça a porra de um milagre político. Eu quero ser apenas um cidadão ordinário que entende e que aceita como justas a maior parte das normas sociais convencionadas. Ah… Os anarquistas me odiariam por escrever isso.

Pode ser que eu não aprenda a desenhar um simples passarinho numa folha de papel em branco ou que eu nunca saiba assinar o próprio nome num documento oficial registrado em cartório, quem dirá, que eu consiga escrever a minha intrigante história de vida. Antes que isso aconteça, é quase certo que já estarei morto, extirpado do escopo social como um tumor indesejado, mais um daqueles sujeitos antissociais que não deram certo na vida entregue às robustas estatísticas oficiais de segurança pública do Estado. Um defunto de luto efêmero.

Um homem por quem ninguém vai citar um verso sequer de Fernando Pessoa. Um celerado esquecido no prazo médio de cinco dias. Um morto devorado pela terra sem honras militares, sem tiros de festim, sem bandeira a meio-pau. Um indigente sem pleitos relevantes de quem quer que seja. Um cidadão sem nenhum tipo de glória plausível, trucidado no auge dos seus 20 e poucos anos.

Por fim, se algum dia, por mero descuido ou engano, alguém se ocupar na checagem do meu mísero dossiê, quando verificar o capítulo que trata dos Antecedentes de Felicidade, encontrará apenas um documento, uma lauda única onde vai constar, escrito em letras garrafais, sob o carimbo oficial da república: Nada Consta.

Comentários

Recomendado para Você..