por Mario Vitor Santos, Brasil 247 -
O inacreditável aconteceu e o país elegeu um presidente de
extrema-direita, defensor da ditadura militar de 1964 e de seu regime de
torturas. Se não se dissipar antes de primeiro de janeiro, o twister
bolsonariano deve atingir o continente trazendo para o país a
intensidade de um dos regimes que se anuncia dos mais infames.
Se essa realidade insiste em surpreender, é óbvio que um
evento como esse não é obra do acaso. Colaboraram um conjunto de ações e
conjunturas. Há, porém, uma singularidade, um ponto de partida
institucional frequentemente omitido em sua relevância. A vitória da
extrema-direita deve-se, acima de qualquer outra influência, a um
trabalho sistemático, cotidiano, um rebento do ventre da mídia
corporativa brasileira.
Foi ela a iniciadora, a solitária da primeira hora, a única
grande instituição republicana a desde o começo trabalhar com convicção
e disciplina, a despeito dos imensos riscos e adversidades, na criação e
promoção direta ou indireta dos valores, fatos, factoides e disposições
mentais agora vitoriosos com Bolsonaro.
Foi ela que, paulatina e pacientemente, com avanços
desiguais e recuos estratégicos, ocupou os espaços mentais e sociais,
confiou na intuição de seu ofício e desafiou a descrença. Seu
desprendimento abalou a inércia dos outros atores, quebrando as
resistências dos que duvidavam, encorajando um agente, reanimando outro.
O empacotamento publicitário de instâncias investigativas e
punitivas em “mensalão” e “Lava Jato”, dentre inúmeras outras
“operações”, favoreceu a montante da campanha geral. Nesse contexto,
Bolsonaro surge, portanto, não como um franco atirador mas como o que é:
a resultante lógica do trabalho subjetivo realizado pela mídia
corporativa brasileira.
A opção por uma candidatura de extrema-direita, a repulsa
ao sistema de direitos republicanos e o derrame de mensagens falsas
(fake news) financiadas ilegalmente via caixa dois no Whatsapp não são o
produto de falta da informação correta mediada pelos veículos
corporativos que adviria do domínio das redes sociais e ferramentas
correlatas. São, inversamente, a consequência e o resultado lógico de
anos de difusão sistemática de conteúdo tóxico para semear o descrédito
num partido, depois nos partidos e na própria democracia.
Na verdade, as redes sociais e os grupos de Whatsapp se
alimentam e reproduzem conteúdo inflamatório em harmonia com a corrosão
diuturna realizada pela mídia corporativa no mundo todo contra líderes
de centro-esquerda moderados, como Lula e Dilma.
Em sua campanha contra as gestões petistas coube à mídia
enfrentar custos políticos e comerciais, num ambiente de perda de
audiência. Pioneiros da jornada, membros antes orgulhosos abandonaram o
barco na fase agora mais radical. Outros começaram a vacilar.
Iniciadores autênticos da ciranda conservadora foram ficando pelo
caminho, em dúvida sobre a conveniência do discurso que lhes deu razão
de viver. Céleres, agora empenham-se em maquiar as biografias, eles
antes tão metódicos em deformar a de outrem.
A avalanche finalmente desencadeada arrastou consigo
expoentes eleitorais e partidos inteiros, deixando um rastro inútil de
mensagens e formas de agir mais palatáveis ao teatro político
civilizado.
Os danos colaterais voltam-se agora explicitamente contra
os próprios veículos e o círculo se fecha. A tarefa foi tão bem-sucedida
que só se completará num êxtase punitivo e purificador, num sacrifício
ritual que deve incinerar o próprio regime da Nova República.
Nesse momento de transe para a turba será sempre necessário
dar a Cesar o que é de Cesar: lembrar que antes dos juristas, dos
empresários, dos economistas, dos banqueiros, dos políticos, dos
partidos e até mesmo dos militares aderirem ao processo de normalização
do inconcebível, um setor da elite investia solitário, disciplinado,
militante, confiante na construção das peças da narrativa que trouxe o
país a este desfecho.
Os meios de comunicação repetiram-se e revezaram-se com
denodo na atribuição contínua ao PT e seus governos de incompetência,
corrupção, aparelhamento, traição ao país, desregramento moral e até, ou
antes, de eliminação de correligionários e adversários. Essa ciranda
envolveu a ação de todos grandes veículos sem exceção e os jornalistas
por meio deles coligados.
Refiro-me em especial àqueles profissionais
que em círculos comunicantes com diversos graus de articulação entre si,
determinam rumos político-editoriais no comando desses veículos.
Os responsáveis por vigiar a correção, o equilíbrio, o
pluralismo e o tom das informações transmitidas ao público
transformaram-se nos agentes do envenenamento da opinião. São eles,
muitas vezes, integrantes de estruturas corporativas informais
nebulosas, de hierarquias e agendas paralelas e a serviço de propósitos
políticos. São os mesmos que na reta decisiva do pleito apressaram-se em
proibir o uso da expressão “extrema-direita” para qualificar o
candidato Jair Bolsonaro sob argumentos de natureza técnica - um gesto
de cunho eleitoral equivalente ao repetido em escala maior pelo juiz
Sérgio Moro, que, enquanto conversava sobre sua nomeação ao ministério
da Justiça do governo Bolsonaro, liberava, na véspera do segundo turno,
delação para prejudicar o candidato do PT.
Não é à toa que vem do mesmo ninho normalizador orwelliano a
denominação de ditabranda para nomear o regime militar de 1964. Se
dublês de magistrados e agentes políticos como Moro saíram agora ao sol,
estes operadores do jornalismo prosseguem relativamente ocultos. A
situação é muito confusa e instável, comportando diversos
desdobramentos, mas o que restar da mídia fará tudo menos examinar a sua
atuação no período, ao menos não sob a mesma lente crítica a que
submeterá o concurso das outras instituições por ela, afinal,
congregadas.
Em vez disso, resta-lhes atribuir ao advento do Whatsapp a
degeneração dos valores democráticos. Culpar, como disse o jornalista
Jonathan Cook em seu blog, as redes sociais e seus correlatos por dar
poder a hordas de cidadãos imbecilizados e ocultar anos de envenenamento
e paciente moldagem social do pensamento para criar um ambiente tóxico e
inflamado de criminalização de instituições, em essência, republicanas,
destruindo a democracia com elas.
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